No escuro do santuário, uma máscara de latão pintada a sangue e poeira basáltica fixava Raquel. Com o abandono do espaço, os uivos e os urros selváticos soltos pelo conjunto de jovens envoltos em franjas de lã tricolor que pulava e dançava em pano de fundo, atrás da figura imóvel, eram amplificados, fazendo eco nas paredes e nos bancos de madeira. Porém, a atenção da jovem congelada no seu assento estava apenas naquela máscara que, na penumbra, lhe dirigia um olhar negro e vazio.
— Aqui tens.
Ela desfitou o careto, olhando o homem que invadia o seu espaço pessoal para lhe oferecer uma caneca de chá. Havia um sorriso atencioso no fim daquele braço esticado, que Raquel não conseguiu retribuir.
— Obrigada.
Os seus olhos voltaram ao altar do outro lado da nave por instantes. Estava vazio, como sempre estivera desde que eles entraram na igreja. Afinal, as encarnações do que é malévolo não tinham lugar em solo sagrado, como ela bem sabia.
— Pensei que só virias depois do Entrudo.
Raquel olhou para Alfredo quando este se sentou a seu lado. Os olhos avelã continuavam meigos, apesar das rugas, e a barba que mantinha cuidada assentava-lhe muito melhor do que alguma vez tinha assentado ao seu irmão mais novo, com quem ela tinha namorado em tempos. Ainda era difícil acreditar que ele era agora um agente da GNR*, dado que a sua presença tranquila arrastava consigo uma aura que dificilmente se associaria a um, mesmo numa zona aparentemente tão pacata.
— Preciso de o ver — murmurou, bebendo um gole do chá de cidreira.
Depois de um momento de estupefação, Alfredo assentiu. Conhecia Raquel o suficiente para saber que ela precisava daquilo para fechar o capítulo mais horrendo da sua vida e seguir em frente. Contudo, o desconcerto dela aflorava de novo as dúvidas com que se debatera antes de lhe telefonar.
Talvez aquilo não fosse boa ideia. Talvez aquilo fosse fazer mais mal do que bem à jovem já de si atormentada. Talvez não devesse ter pegado no telemóvel. Talvez não devesse ter cobrado a Telma o favor que ela lhe devia.
Mas agora era tarde.
— Fazemos isso amanhã, então — prometeu, mais para si do que para Raquel, pousando a mão no joelho dela.
— Obrigada.
Ainda que se tivessem cingido ao silêncio, a quietude do santuário era perturbada pela música e gritaria do lado de fora, num anúncio de que o Domingo-Gordo estava longe de terminar. A jovem apertou a caneca nas mãos, tentando focar a sua atenção na dor que o calor do líquido transmitia às suas palmas através da cerâmica. As reminiscências do passado teimavam em ganhar palco na sua mente, empurrando-a de novo para um estado de devastação emocional.
— Quando te sentires preparada, eu levo-te à pousada — disse Alfredo, tentando trazê-la à realidade. — A Sofia fez-me o favor de te guardar um quarto.
Raquel apenas murmurou em aceitação. Por muito que vasculhasse as suas memórias, não tinha ideia de que Sofia ele estaria a falar.
Conversaram sobre a passagem do tempo e de tudo o que tinha acontecido enquanto estiveram afastados, evitando a generalidade do assunto que os tinha juntado. Depois, quando a folia saiu da rua da igreja, Alfredo foi devolver a caneca às traseiras do santuário, onde o padre tinha uma salinha privada para tratar dos seus afazeres, antes de guiar Raquel ao sítio onde pernoitaria durante a sua estadia na aldeia.
Sofia, a dona da pousada, era nova na terra. As duas mulheres nunca antes se tinham cruzado e a mais nova ficou com a simpatia da roliça proprietária na memória quando subiu ao andar de cima, recusando o jantar. O estômago estava demasiado embrulhado para aceitar qualquer tipo de alimento.
Sozinha no conforto da pequena divisão, Raquel suspirou de alívio. Estava a salvo. Ninguém conseguia entrar ali a não ser que arrombasse a porta trancada a corrente e chave.
Ao passar a cama para adentrar a pequena casa de banho e se refrescar, a jovem viu um vulto pelo canto do olho, por entre as cortinas. De novo sob o efeito duma descarga de adrenalina, ela aproximou-se do vidro para inspecionar, confiante que a altura do primeiro andar era dissuasor suficiente para a maioria dos perigos.
Quando teve as mãos no tecido pesado, apertou-o entre os dedos, reconhecendo o vulto. Não passava de um mural na parede do edifício da frente. Porém, era realista o suficiente para a lançar numa espiral de recordações do seu amargo passado.
739 palavras
GNR — Guarda Nacional Republicana; uma força de segurança de natureza militar em Portugal
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Na pele do Diabo ✔
Short Story🥈 ᴄᴏɴᴛᴏ ᴠᴇɴᴄᴇᴅᴏʀ ᴅᴏ ꜱᴇɢᴜɴᴅᴏ ʟᴜɢᴀʀ ɴᴏ ᴅᴇꜱᴀꜰɪᴏ 18 ᴅᴏ ᴘᴇʀꜰɪʟ ᴡᴀᴛᴛᴀᴘᴅꜱᴜꜱᴘᴇɴꜱᴇʟᴘ Raquel jurou nunca mais regressar à sua aldeia natal no interior Transmontano, muito menos durante o Entrudo. Contudo, bastou receber uma chamada telefónica para mudar de i...