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— Eu espero aqui fora.

Raquel deixou de seguir Telma, a agente da Judiciária* que Alfredo lhe tinha apresentado momentos antes, para olhar o homem atrás de si.

— A não ser que queiras que vá contigo — ofereceu ele, ao ver o desespero silencioso que tomava forma por detrás das íris castanhas de Raquel.

Ela consentiu, soltando o ar que não sabia que estava a suster até Alfredo dar a entender que a seguiria.

A noite anterior tinha sido impossível. As memórias da irmã lavada em lágrimas à porta do seu quarto não lhe deram tréguas, nem o relato que ela tinha feito, engasgada em medo, vergonha e ranho, daquilo que lhe tinha acontecido naquela fatídica tarde de domingo. 

Máscara... 

Bengala... 

Dor... 

Rasgões...

Cassiopeia...

Dor.

Dor!

— Tens a certeza disto? —  perguntou Alfredo, depois de um olhar de Telma na sua direção.

Raquel nem se lembrava do caminho até ali, à porta que a separava do perpetrador. Os seus pés tinham parado mais atrás do que deviam, com o turbilhão de emoções no seu interior a transformar-se em hesitação.

Mas ela queria aquilo. Precisava daquilo. Por isso assentiu. Telma abriu a porta e Alfredo, inseguro quanto à melhor maneira de mostrar apoio, seguiu Raquel de perto.   

— Não são nada parecidas. Nem um pouquinho —  foi a primeira coisa que o homem na cadeira disse ao vê-la adentrar a divisão.

Por momentos, Raquel só conseguiu ver a máscara vermelha de couro com o padrão mais exótico que alguma vez encontrara, tal como a tinha vislumbrado pela última vez cinco anos antes, por entre um ataque de pânico e chocalhos. Depois, o careto levantou-se da cadeira para dar a volta e se posicionar atrás do homem em que se tinha tornado com o tempo, emoldurando-o com o disfarce de lã tricolor que tinha usado quando mais novo.

Durante anos, o culpado de tudo tinha permanecido uma incógnita. Um némesis sem rosto. Agora, uma confissão tardia e um brinco ensanguentado tinham revelado toda a verdade.

 O sangue dela ferveu.

— Não, Bruno. Nunca fomos parecidas — conseguiu dizer, numa calma que não sentia. 

As meninas dos Figueiredo eram famosas na aldeia porque eram ambas adotadas, o que era raro na terra. E ainda que não partilhassem sequer uma gota de sangue com a família, tinham sido ambas muito amadas. 

— Surpreende-me que saibas o meu nome. Sinceramente, não sabia o teu até há pouco tempo.

Ela sentiu uma pontada nas costas, como se ele lhe tivesse cravado ali uma adaga. Tinham sido todos colegas de escola — as Figueiredo, o Tomás, o Vicente, a Fernanda, a Mónica e o Bruno. Todos. E ainda que ele nunca se tivesse dado ao trabalho de fazer mais do que reconhecer a sua existência, ela ouvira o nome dele vezes suficientes da boca do primo e do namorado para nunca mais o esquecer.

No canto da sala, Rafaela levantou-se da sua posição encolhida, entrando no campo de visão da irmã. Tinha o lábio rebentado, a maquilhagem borrada pelas lágrimas, hematomas na pele, as roupas num desalinho e o brinco da orelha rasgada em falta. A sua mão apontou para o pescoço do homem. Ali estava a Cassiopeia, gravada como pepitas de chocolate numa base de baunilha.

—  Porquê? — arquejou Raquel, cobrindo a boca com a mão. As imagens estavam todas a voltar em catadupa, carregadas de sensações. — Como é que foste capaz?

Ele teve o desplante de encolher os ombros.

— Não sabes porque nunca o vestiste. Nunca a colocaste na cara. Mas o irmão dele sabe, e ele também deve saber — disse, apontando para Alfredo. — A energia transcendental que se apodera do nosso corpo. A força que nos arranca à nossa adolescência e que nos faz homens. Que nos permite assegurar o nosso papel na aldeia e no mundo.

Raquel fechou as mãos em punho. Nos ouvidos retiniam as palavras que sempre ouvira: no Entrudo, ao careto perdoa-se tudo.

Aquilo incomodava-a. Ainda que a maioria das tropelias cometidas em virtude das festividades e do anonimato do disfarce fosse, na sua essência, inocente, havia a potencialidade de não o ser. 

E, infelizmente, o seu medo tinha-se tornado realidade.

 — Mas é sobre isso que trata o Entrudo, não é? Estimular a fertilidade, trazer a cor e a vida a um mundo que se despede da crueldade do inverno — continuou Bruno, inclinando-se para ela. — De acabar com a solidão das gentes, de permitir o excesso e a euforia sem o julgamento alheio e as austeras normas sociais. É um dia para celebrar aquilo que temos de mais primitivo e que, durante o resto do ano, deve ficar trancado no nosso interior. 

A curta visita acabou ali.

Raquel saiu de rajada pela porta, incapaz de segurar o conteúdo do estômago. Por dizer, entrançadas nas cordas vocais, ficaram as palavras que atestavam o quão doentio Bruno realmente era.


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Judiciária — Polícia Judiciária; uma das organizações policiais responsáveis pela investigação criminal em Portugal

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Judiciária — Polícia Judiciária; uma das organizações policiais responsáveis pela investigação criminal em Portugal

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