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Raquel pisava a calçada portuguesa com cautela, para não deixar as solas dos sapatos resvalarem na pedra polida com a sua pressa. As ruas da pequena aldeia onde crescera nunca lhe tinham parecido tão íngremes e apertadas como naquele dia, atulhadas como estavam de visitantes que desfrutavam da animação de rua.

O retinir dos chocalhos ecoava por entre as frias casas e a massa de corpos, sendo acompanhado pelo ritmo dos tambores e o choro frenético das gaitas de foles. Sentindo um zumbido nos ouvidos, Raquel acelerou o passo, cobrindo as orelhas com as mãos. Odiava as festividades pagãs da sua terra e a necessidade que tivera de voltar ao sítio que tanto ela como a família juraram esquecer e renunciar.

Ao fazer a curva, a jovem chocou de frente com uma figura de riscas coloridas que, numa primeira instância, estendeu os braços para a agarrar e chocalhar. Depois, alarmado com o grito de pavor que Raquel soltou ao sentir a proximidade crescente do careto, o jovem mascarado afastou-se, deixando-a em paz.

Raquel cambaleou às arrecuas, deslizando até ao chão quando sentiu a rugosidade da parede de pedra atrás de si. Tinha apenas de alcançar a igreja no fundo da rua, a uma centena de metros de distância, para ficar a salvo. Porém, um relance na direção que tinha de seguir dizia-lhe que aquilo era tarefa impossível. Havia um mar de figuras demoníacas, de todos os tamanhos imagináveis, entre si e o solo sagrado.

— Raquel?

A jovem, que lutava por manter a respiração sob controlo, tirou a cabeça de entre os joelhos fletidos e olhou para cima. O dono da voz aveludada agachou-se lentamente à sua frente, trazendo os olhos avelã para o nível dos seus.

— O que é que estás a fazer aqui? Só contava contigo na segunda.

A mão dele estendeu-se na sua direção, mas estacou ao perceber a negação veemente com a cabeça e os tremores que percorriam o seu magro corpo.

Olhando em volta, o mais velho retirou o sobretudo, cobrindo-a antes de a ajudar a levantar.

— Vem. A igreja não está longe — disse. Graças às suas memórias, sabia exatamente para onde ela precisava de ir. 

Os dois tropeçaram pela multidão, ele a tentar suster Raquel, ela a evitar contacto com qualquer mascarado, independentemente da idade, enquanto recuperava o fôlego. O casaco grande e pesado que lhe toldava parte da visão ajudava na tarefa e, graças a esse escudo de tecido, a chegada ao seu destino foi mais rápida do que esperava.

O homem afastou-se dela por momentos, segredando-lhe ao ouvido que voltaria em breve. Raquel fixou os seus sapatos, a contar os segundos para inspirar e expirar. O som dos chocalhos e das festividades ribombava no seu corpo, tornando difícil a tarefa de se abstrair de toda aquela folia.

— Anda — disse a voz de novo, quando uma mão robusta se meteu no seu campo de visão.

A jovem agarrou-se àquela mão como se de uma bóia salva-vidas se tratasse, seguindo o seu guia em passo apressado, quase o empurrando para longe de toda aquela multidão, na ânsia de deixar para trás o mar de caretos e facanitos. 

E, quando por fim pisou solo sagrado e a pesada porta de madeira se fechou atrás de si, separando-a do mundo demoníaco no exterior, Raquel desabou no chão, aliviada.

Estava viva. Pelo menos por enquanto.

550 palavras

Na pele do Diabo ✔Onde histórias criam vida. Descubra agora