A Casa na Árvore

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Havia uma cidadezinha no meio dessa floresta a muito tempo, cercada por uma vegetação densa que cobria boa parte dessas terras. O povo era bem pacífico e próspero. Obviamente, cercados pelo verde, eles viviam dos animais que caçavam e das frutas, e vegetação em geral, que a natureza dava. Apesar de intrigas cotidianas, todos viviam em relativa paz, sem grandes problemas ou catástrofes. Entretanto, isso estava prestes a mudar.

Um belo dia, Haul foi acordado por uma gritaria incessante em toda a cidade. A balbúrdia o tirou da cama antes mesmo do nascer do sol, e ele saiu para ver do que se tratava. Mal passou pela porta e já percebeu, em choque, o motivo de tanta agitação. Seus olhos castanhos, quase negros, estavam tomados pelo desespero, e neles estava refletido o puro caos.

A cidade estava fria e escura, mas não a escuridão habitual de uma madrugada antes da alvorada, uma escuridão sinistra e pesada que pairava, quase tangível. As árvores ao redor estavam negras como cinzas, secas, enrijecidas e sem folhas em seus galhos. Na verdade não haviam folhas em lugar nenhum. A grama rasa era só pó, e os arbustos secos esbanjavam espinhos longos e perigosos. Não havia também nenhum sinal de vida animal, que provavelmente fugiram durante a noite. Tudo estava definhando e apodrecendo.

- Haul! O que a gente vai fazer? As plantações morreram, até o pão do padeiro estragou. A floricultura, a horta, nada escapou. - Tairo era seu melhor amigo. Era um alívio vê-lo bem, já que ele trabalhava justamente na floresta com o pai caçador. Mas esse alívio não mandava embora o medo que ele estava sentindo.

- A Baba. A gente precisa falar com a Baba. - era a única opção que ele conseguia pensar.

- Você sabe que eu morro de medo daquela velha, Haul. Você tem certeza que não tem outro jeito?

- Você tem uma ideia melhor?

E lá foram eles. Meio a contra gosto, Tairo acompanhou o amigo em direção à casa que a senhora morava. Uma casa bem estranha, construída no topo de uma árvore que mais parecia as patas de alguma ave gigante. Alguns diziam que aquela árvore nem sempre esteve ali, e que, no meio da noite, um som estrondoso e compassado trouxe a casa para aquele lugar, como se ela pudesse, de alguma forma, andar por aí. Os mais velhos juravam ter visto marcas de patas perto de onde ela surgiu, patas muito parecidas com as de uma ave.

Haul estava prestes a chamar por ela quando uma escada de cordas desceu sobre eles, batendo na cabeça de Tairo antes de descansar diante deles, balançando como um pêndulo.

- Vamos, subam. O que estão esperando? - uma voz aguda e rasgada ecoou lá da cima.

Eles subiram com certa relutância, e no meio do caminho notaram a escada puxando eles para cima. Quando o susto passou, eles já estavam na varandinha e a porta estava aberta. Na parte de dentro eles podiam ver uma criatura corcunda e baixinha fuçando todas as prateleiras e estantes empoeiradas e abarrotadas de potes de vidro, sacos de pano, garrafas e teias.

- Entrem, entrem. Não fiquem aí parados. - ela nem olhava para eles. Estava focada demais vasculhando o lugar de alto a baixo - Droga, minhas raízes e ervas foram todas destruídas. Aquele maldito me paga! - resmungou.

Os garotos se entreolhavam sem entender nada, mas antes que pudessem perguntar qualquer coisa, a senhora se jogou na poltrona quase tão velha quanto ela, ofegante, exausta e frustrada, e os convidou a se sentar também. Havia um toque de impaciência em seu tom de voz, então, recuperando o fôlego, ela começou a contar uma história a muito perdida.

Falava sobre um paraíso esquecido, um lugar belo e repleto de criaturas que nem a imaginação mais fértil poderia conceber. Falava sobre uma criatura rebelde que desobedeceu as regras do paraíso e foi expulsa, condenada a vagar por terras inférteis por séculos. Falava também sobre uma caverna que ela passou a chamar de lar, e sobre um tesouro que ela protegia. Um tesouro que faria até mesmo o mais rico dos homens parecer apenas um pedinte miserável que não tinha onde passar a noite.

Baba Yaga tinha certeza de que a criatura fora a causa daquele desastre, e dizia que alguém precisava acabar com aquilo, antes que a situação piorasse. Logo os animais restantes na cidade também começariam a morrer, e então seria a vez das pessoas. Seria o fim daquele povo. E de repente, o medo de Tairo pela senhora em sua frente parecia minúsculo, se comparado ao medo desse cenário. Todas as pessoas que ele conhecia e todos os que amava sofreriam o pior destino que ele poderia pensar, definhando como as plantas obscurecidas ao redor.

Com um mapa rabiscado da floresta, os garotos saíram voando pela porta da casa e desceram como um raio em direção às suas casas. A casa de Haul estava mais para oficina do que para uma casa propriamente dita. O ferreiro da cidade, que ele chamava de pai, trabalhava dia e noite em sua forja. Haul passou sua infância brincando com gravetos da floresta, até que um dia seu pai lhe entregou o melhor presente que ele poderia pedir: uma pequena espada de madeira, cuja empunhadura carregava o entalhe de um pequeno sol que estendia seus raios por todo o comprimento do brinquedo. O garoto ficou tão feliz que seus olhos brilhavam mais que o próprio astro rei, e jurou proteger os que amava com ela.

-Um dia, meu pequeno, você será capaz de proteger a todos. Se você se dedicar, poderá se tornar o maior herói que esse mundo já viu....

-PAI! - o garoto escancara a porta da forja, a faísca voa do martelo com o impacto que Helior causa entre as ferramentas ferventes - Eu preciso da sua ajuda.

- Algo me dizia que esse dia chegaria, meu pequeno. Você cresceu muito desde aquele dia. - o homem joga a ferramenta recém terminada no balde de água, e caminha até um canto do recinto, de onde puxa um baú grande e pesado, sem esforço - Isso, Haul, é meu melhor trabalho. Eu passei anos fazendo isso para você. Talvez esse seja o último presente que te dou. Proteja seu povo, garoto. Mas pelo amor de Deus, volte bem.

O baú se abre com um baque, revelando algumas peças de uma armadura de placas, e de dentro de um pano, o homem tira uma espada de pouco menos de um metro. A lâmina reluz sob a labareda da fornalha, os detalhes se destacam em meio às sombras palpitantes. Não é só uma arma, é uma verdadeira obra de arte. Algumas partes do design antigo se mantêm, os raios do sol percorrem o fio da lâmina de ponta a ponta, o guarda-mão também tem o formato de um sol, o punho tem algumas ranhuras entalhadas, que mostram uma criança erguendo um graveto sob a sombra de um homem enorme a protegê-la. Eles têm uma longa conversa enquanto o jovem se veste e se prepara.

- Não ache que eu estou feliz com isso. Você está correndo muito perigo. Não foi exatamente para isso que eu fiz esse presente para você, mas é o destino que você escolheu. Só quero que você saiba que eu te amo.

- Também te amo, pai. E não se preocupe, eu confio na qualidade das suas forjas. Eu vou voltar com certeza.

Eles se despedem com lágrimas nos olhos e Haul segue rumo à floresta, colocando o capacete sobre a cabeça. A maioria das pessoas está desesperada demais para prestar atenção em uma armadura completa perambulando por aí, mas existe uma pessoa que o percebe.

- Eu vou com você. - Tairo agora está com suas roupas de caça, além do arco de seu pai e da aljava na cintura, ele porta algumas adagas que costuma usar para limpar a carne. Seu peitoral de couro não é tão eficaz quanto uma armadura completa, mas dá mais liberdade de movimento, tornando o garoto um caçador ágil e preciso em seus tiros.

- Nem pensar. Você fica.

- Tá de sacanagem? Eu não vou ficar parado enquanto você se arrisca por aí. E eu aposto que você não sobrevive duas noites nessa floresta sem mim.

Os amigos riem e, a contra gosto, Haul aceita a companhia de seu parceiro. Ambos adentram a floresta, seguindo o nascer do sol, sem sequer imaginar o que os aguarda à frente.

Aquele Que Habita no AbismoOnde histórias criam vida. Descubra agora