Capítulo I

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Chovia intensamente, deixando a rua ainda mais escura e vazia do que o normal. A chuva e suas botas batendo no asfalto eram os únicos sons que Helena podia ouvir enquanto caminhava de volta para sua casa. O sobretudo que usava a protegia um pouco do frio, mas, sem guarda-chuva, sua cabeça estava desprotegida da água que caía e seus cabelos loiros já começavam a ficar encharcados.

Depois de um longo dia de trabalho, já estava ficando cansada de andar e, ao virar a esquina, ficou feliz ao perceber que estava próxima de seu apartamento. Só mais algumas ruas e poderia tirar sua roupa molhada, tomar um banho quente e dormir. O beco pelo qual deveria atravessar, assim como as ruas que cruzara anteriormente, estava vazio, assumindo uma aparência ainda mais intimidadora do que a de costume. Um arrepio subiu pelo pescoço de Helena, indicando que ela deveria ficar alerta.

Apertando o sobretudo contra o corpo e acelerando o passo, ela entrou na longa rua que a levaria ao outro lado do quarteirão e ainda mais perto de sua casa. Mesmo à noite, a cor verde escura do mofo que crescia destacava-se contra a tinta esmaecida das paredes e das pichações nos prédios. Entre um e outro, pequenos becos se formavam, onde as grandes lixeiras eram postas pelos moradores.

Era em um desses espaços que eles estavam escondidos. Helena estava no meio do beco quando o primeiro apareceu alguns metros à sua frente, saindo da escuridão que o protegia. Sentindo novamente o calafrio em seu pescoço, ela decidiu de imediato voltar. Aproveitando-se de que ainda havia distância entre os dois, ela planejava correr na direção em que viera e buscar maior segurança nas ruas principais. Rodou nos saltos de suas botas somente para encontrar os outros dois. Estava cercada. Os calafrios em seu pescoço subiam e desciam com enorme intensidade, deixando todos os seus pelos eriçados.

Estavam vestidos todos do mesmo jeito. Tênis, calças largas, casacos com os capuzes abaixados escondendo seus rostos. A escuridão garantia uma proteção extra, tornando impossível qualquer forma de identificação. Era com isso que eles contavam. Já haviam praticado aquela rotina com várias mulheres antes. Sempre mulheres sozinhas passando por aquele beco escuro. Essa era só mais uma. Depois dela haveria a próxima.

- Então, querida, o que você tem para nós?

Os dois que estavam agora à sua frente deram um passo em sua direção, aproximando-se. O terceiro, às suas costas, permaneceu em sua posição no centro da rua, bloqueando o caminho. A chuva continuava a cair e um vento gelado começava a soprar, tornando a atmosfera ainda mais sombria e lúgubre.

- Me deixem passar - Helena disse com uma voz fraca. - Eu não quero problemas. Só quero chegar em casa.

- Você vai poder ir para casa. Quando terminarmos.

Helena levou a mão ao pescoço, tentando interromper os arrepios que ainda subiam e desciam por suas costas, e fechou os olhos. No verso de suas pálpebras, podia ver claramente a posição dos três homens que a ameaçavam. Suas silhuetas estavam marcadas com um brilho avermelhado. Engraçado como vermelho era naturalmente a cor que indicava perigo. Ela podia sentir eles se aproximando novamente. Fosse lá o que estivessem planejando, ela não estava disposta a ficar para descobrir. Concentrando-se nas formas vermelhas que via, suspirou e abriu os olhos.

Os três sentiram seus corpos sendo violentamente repelidos, como se empurrados por uma força invisível. Uma força invisível que emanava daquela mulher loira, de olhos azuis, botas e sobretudo. A violência foi tão grande que todos foram içados do chão, indo bater nas paredes dos prédios ou no asfalto molhado. O primeiro a se recuperar do impacto, ainda atordoado e confuso, esboçou uma tentativa de se levantar. Parou a meio caminho quando percebeu o tom violeta que os olhos de Helena agora exibiam.

- Você é um deles! - exclamou em um misto de medo e raiva.

- Aberração! - vociferou o que estava ao lado e que também começava a se levantar.

- Vamos sair daqui.

Os dois deram as costas para Helena e fugiram depressa. O terceiro, correndo o mais próximo à parede e o mais longe de Helena o possível, levou somente alguns segundos para alcançar seus companheiros.

A chuva insistia em cair. Os cabelos de Helena estavam grudados em seu rosto e suas roupas estavam encharcadas. Ela começava a tremer de frio. Os arrepios em seu pescoço finalmente haviam cessado, agora que o perigo havia passado. Ela retomou sua caminhada em direção à sua casa, ciente de que seu descanso seria inevitavelmente interrompido pela dor de cabeça que aparecia quando usava suas habilidades. Todas as habilidades tinham um efeito colateral. A dela era dor de cabeça. A de outros era algo pior. Eventualmente os efeitos podiam se tornar permanentes.

Como tantos outros nascidos com habilidades, Helena estava acostumada com o medo e o preconceito dos habitípicos. Ser chamada de aberração não era uma surpresa e nem de longe a pior coisa que já havia ouvido. Desde que foram identificados, os habiespeciais vinham sendo explorados e marginalizados. Alguns poucos haviam conseguido ascendência social, mas a maioria ainda morava em guetos e só conseguiam subempregos.

Há alguns anos, as coisas pareciam dar ares de mudança. Os habiespeciais começaram a se organizar e mutuamente se proteger. Apesar de cada um possuir uma habilidade diferente, existia uma ligação entre eles, ainda não completamente explicada. Os políticos e os grupos de habitípicos mais radicais temiam uma insurgência e o clima no país tornava-se progressivamente tenso. A eleição do Partido Nacional foi uma grande esperança para garantir a paz. Com uma proposta inclusiva, os habiespeciais passaram a ser incorporados em diversas categorias do governo. Foi assim que Helena havia conseguido seu emprego atual na ASCAN, a Agência de Segurança e Controle de Ameaças Nacional. E havia sido lá que havia conhecido Marcos.

Estava na porta de seu apartamento. Subiu as escadas, aliviada de sair da chuva e sentir a segurança de estar em um ambiente conhecido. Tirou o sobretudo, a blusa, suas amadas botas e a calça que usava e foi tomar um banho. O calor da água quente, contrastando com o frio da água que caía lá fora, a ajudava a relaxar. Amanhã seria outro dia, apesar desse pensamento não a animar muito. Após colocar seu pijama, Helena ficou observando seu reflexo no espelho por um tempo. Seus olhos alternavam entre o azul e o violeta, descontrole resultante do cansaço e do esforço do episódio que ocorrera no beco há algumas horas. Além dos efeitos colaterais, eventualmente, os habiespeciais perdiam o controle de suas habilidades. Concentrando-se, Helena finalmente conseguiu estabilizar a cor de seus olhos. Imediatamente, a dor de cabeça veio. Mais intensa do que da última vez, o que era esperado. Conformada, Helena pegou dois comprimidos de analgésico e dirigiu-se ao seu quarto para dormir.

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