Capítulo II

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O dia seguinte veio e com ele um novo dia de trabalho. Na sede da ASCAN, Helena se juntava aos seus companheiros, compostos em sua maior parte por habitípicos. Na verdade, somente ela e Marcos eram habiespeciais. Ao menos, somente eles eram habiespeciais registrados. A maioria a tratava bem, mas ela sabia que sua presença ainda gerava desconfiança. Hostilidade contra sua condição, ainda que velada, existia, como os arrepios em seu pescoço quando ela cruzava os corredores não a deixavam esquecer.

Nesse ambiente, a amizade com Marcos desenvolveu-se de forma natural. Unidos inicialmente por um instinto de sobrevivência e pela conexão inexplicada, a compatibilidade de temperamentos os aproximou. Nos dias mais difíceis, recorriam um ao outro. Quando saíam em suas respectivas missões, preocupavam-se um com o outro.

Helena, com sua percepção de perigo iminente, começava a acompanhar as operações da agência em protestos, identificando potenciais agitadores. Logo começaria a sair com os outros agentes em missões mais perigosas, como na investigação de grupos do crime organizado ou terroristas. Marcos era mais antigo na ASCAN. Sua habilidade em voltar no tempo era utilizada em missões mais complexas, das quais pouco se sabia e sobre as quais ele não tinha autorização para discutir.

Nos últimos anos, Helena preocupava-se cada vez mais com Marcos. Os efeitos colaterais de sua habilidade estavam tornando-se mais intensos. Há tempos ela percebia um ar melancólico em seu rosto que não existia antes. Os sorrisos ficaram mais raros e ela percebia que havia momentos em que ele parecia simplesmente se arrastar ao longo do dia.

- É como se eu não estivesse aí com o resto de vocês - disse Marcos em um dia em que tomavam café juntos.

- Como assim?

- Voltar no tempo tem suas consequências. Eu estou vivendo em uma linha do tempo e vocês, em outra. Eu vejo a vida passar e não estou nela. Não verdadeiramente. É como se o mundo tivesse seguido em frente e eu fiquei para trás. Entendeu?

- Não muito.

- É difícil de explicar mesmo. É uma sensação esquisita, mas para mim é bem claro.

- Isso é reversível? - indagou Helena, apreensiva.

- Não sei - disse Marcos, desviando o olhar. - Só sei que não está melhorando.

Todos em volta levantaram-se e começaram a sair da sala. A reunião acabara, despertando Helena de sua lembrança. Ela também deveria sair. À medida que passava no corredor, atravessando as muitas salas dos outros funcionários da ASCAN, o arrepio em seu pescoço ia e voltava. Colocando a mão na nuca, fechou os olhos. Silhuetas com um tom laranja tênue a cercavam. Medo. Um tom verde intenso se destacava na sala ao lado. Inveja. Nada vermelho. Estava tudo bem. Tudo dentro do esperado.

Antes de abrir os olhos novamente, um brilho dourado chamou sua atenção. Marcos. Havia voltado de sua última viagem. Para Helena, o brilho que o envolvia havia se intensificado. Os efeitos colaterais da habilidade do amigo cresciam. Ela o encontrou na copa, de costas para a porta, esquentando café.

- Olá! Quanto tempo que não nos vemos.

Ele virou-se, surpreso, ao ouvir essas palavras. Ao ver o rosto de Helena, sorriu e a envolveu em um abraço forte. Estava cansado, tanto da missão quanto dos efeitos colaterais que vivenciava. Sentia que cada vez mais se distanciava da realidade. Não que enlouquecesse, mas que passava a viver em outra realidade. Em outra linha do tempo. Uma linha do tempo que estava no passado, onde tudo era pesado e mais lento. Cada vez que usava sua habilidade para viajar ao passado, a sensação tornava-se mais forte e mais prolongada. Marcos sabia que logo iria tornar-se permanente. Depois disso, não sabia o que poderia acontecer: se viveria daquela forma para sempre ou se não conseguiria voltar para o presente. Fosse um desfecho ou outro, estaria condenado a viver para sempre no passado.

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⏰ Última atualização: Nov 05, 2023 ⏰

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