Quando cheguei nas ruínas, havia diversos locais que poderia visitar ou o que sobrou deles. Meu primeiro alvo foi a agência de correspondência, imaginei que poderia ter algo que não foi perdido, uma carta ou jornal do dia.
Após vasculhar alguns escombros e ver embaixo das paredes de cimento encontrei apenas sujeira e pequenos animais, mas foi nos fundos do lugar que consegui algo.
Um jornal, estava sujo e molhado, mas consegui tirar algo de um dos editoriais, recortei com um canivete que tinha. É isto aqui.Lutei ao lado de uma das maiores guerreias, uma vez. Uma das não. A maior. Parecia uma boneca quando entrou no quarto. Branca. Orelhas pontudas. Loira e com olhos estranhos. Pareciam tão vazios e cheio de empolgação. Eram rosa, quase carmesim. Estava cabisbaixa, tímida eu diria. Não dizia uma palavra nos treinos. Não respondia à ninguém.
Fazia de tudo. Tudo. Ela era a estrela em tudo que fazia. Excepcionalmente nos duelos e no manejo de armas. O que mais me assustava era como uma mulher como ela podia ser mortal. Num duelo de sangue que a desafiaram, tivemos que amarrá-la para não finalizar o homem. A expressão dela assustava qualquer um.
Não demorou muito para subir de cargo. Cabo. Terceiro, segundo e primeiro-sargento. Chegou em primeiro-tenente como um raio. Tínhamos suspeitas que possuía contatos lá encima. Porém, estávamos apenas tentando justificar nossa inveja. Quando a guerra estourou, foi a primeira a se voluntariar na linha de frente.
No dia, eu vi seu olhar. Parecia animada. Ri dela na época. Pensei que ela estava animada, pois pensava que a situação era boa. Como nas histórias que contávamos. Imaginei que ela fosse morrer no início. O campo é totalmente diferente do quartel.
Olhando para trás, agora rio de mim mesmo. Na primeira batalha, empunhava as lâminas como nunca vi. Cortava a garganta dos maiores. Eram os melhores para ela. Mas seu olhar. Seu olhar era que assustava. Lutávamos contra criaturas bestiais. Mas ela. Ela era o real monstro.
Gargalhava. Se banhava no desespero dos inimigos. Aqueles olhos vazios que vi no primeiro dia. Nunca estiveram mais cheios de vida. A vida daqueles que ceifava.
"Demônio de Prata". Como foi conhecida pelos inimigos. Já que, graças os feitos em campo, recebeu a maior honraria de nosso marechal. Uma armadura banhada de prata.
Tinha um costume esquisito. Dizia ser de seu povo. Botava ornamentos em dourado nas orelhas. Brincos. Piercings no rosto. Anéis nos dedos. Todos dourados, como seus cabelos. Clamava que em sua terra, era um jeito de homenagear aqueles que se matou. Era surreal a quantidade. Acredito que signifique dez ou cinquenta mortos, cada.
O tempo se passou. Subia de patente mais uma vez. Nem nossos superiores conseguiam entender seus feitos. Ganhava cicatrizes novas a cada batalha. Parecia proposital. Um troféu para ela, imagino eu. Uma vez, distraiu-se. Uma flecha perfurou a bochecha. Sobreviveu, mas a marca ficou. Em outra, apareceu no quartel com o pedaço da orelha faltando e um homem amarrado. Espião ela disse. Já a mais marcante, foi em sua última batalha.
Desafiou o campeão inimigo. Aquele que todos temíamos, pois ceifava como ela. Vitoriosa saiu, porém, com um preço. Seu olho esquerdo. A marca percorria da bochecha até a testa e quando voltou, debulhou-se sobre o chão.
Teve que sair. Mas não queria. A questão é que a Marechal, tinha outros planos para novos soldados. Uma única rata de laboratório, como ela própria disse, criou armas mais mortais que a melhor lutadora.
Não se cansavam. Não dormiam. Se morressem, criava-se mais outra dúzia depois. O que precisavam era de um único cristal e metal. A mão para construí-la havia aos montes. Descobri seu nome ao se aposentar, Jaskall. Eleonor Jaskall. Realmente, não era de Hexlair. Dizia ser de uma cidade menor ao leste, mas nunca comentou ser qual.
Quando foi para casa, nunca mais a vi. Mas seu olhar era tristonho. A melancolia que exalava infectava a todos. Sabíamos que nossa campeã estava "morta". Depois de tantos anos de que a guerra acabou, me pego imaginando o que ela estaria fazendo. Como ela está. No que trabalha agora? Se trabalha. Se tem uma família. Um marido. Uma esposa. Ou algum filho.
Quem diria, uma pequena inventora mudaria o destino da pessoa que admirei, da cidade e de nossa nação inteira.
— Major Ykan Unklof.
Ela deve ter sido importante, mas imagino que deve ter sido solitária ou enigmática. Imagine ver uma pessoa tão mortal assim, observar o que ela pode fazer e pensar "por sorte está do nosso lado". Não teria medo?
Ele parecia ter, mas também tinha admiração por ela ou será inveja? Talvez eu tivesse, me perguntaria "o que estou fazendo aqui?" se ela pudesse fazer cinquenta vezes mais que um velho com dores nas costas.
Por isto imagino que tenha sido solitária, não parece ter sequer mantido o contato com os que conheceu lá. Talvez, quem sabe, que estivesse liberando a dor de um fardo e por isso continuasse assim.
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Maquinário Tóxico
Ficción GeneralAlguns chamam-me de viajante, andarilho ou um trotador de mundos, mas acredito que sou um colecionador. Meu trabalho é juntar peças, objetos mortos que um dia já contiveram sentimentos, desde aqueles com valores incríveis quanto lixo. Meu destino d...