The first step.

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Fique.

Aquela não era a primeira vez que Kaz Brekker derramava uma súplica dolorosa e por tanto tempo suprimida em sua Espectro. Mas ele havia vivido dois anos distantes de Inej, dois anos insuportáveis. Não era a primeira vez, mas ele pedia a todos os santos que fosse a última.

Inej passara dias, semanas, meses, viajando com o propósito de libertar escravos que, como ela, tanto sofriam nas mãos sombrias daqueles que lucravam com sua dor. Nesse tempo, à bordo da Espectro, ela havia construído uma exuberante rede de piratas unidos com o mesmo propósito que a levou a deixar Ketterdam.

Mas, quanto mais o tempo passava, mais ela sentia uma corrente a puxar de volta para o local que ela tanto aprendeu a odiar. Apenas quando esse fio se tornou, poderoso, indestrutível, impossível de ignorar, ela resolveu apostar na possibilidade de um motivo. Um motivo que faria a volta valer a pena.

Como sempre, silenciosa e graciosamente, ninguém a detectou quando ela atravessou, rua por rua, telhado por telhado, a pequena ilha de Kerch. Ao chegar ao clube do corvo, lá ela o avistou. Em seu escritório, de costas para a janela, de luvas de couro, a bengala apoiada na mesa. Ele não havia envelhecido. Era o mesmo Kaz que ela havia aprendido a, de certa forma, amar. A garota permaneceu parada, apenas o observando. A expressão de Kaz concentrada, embora neutra, não havia mudado em nada. Apenas olhá-lo fez seu coração acelerar, a respiração falhar. Era como um veneno que se espalhava por seu corpo, pouco a pouco, sem que houvesse um antídoto ao qual ela pudesse recorrer.

Ela estava prestes a sair da janela do bastardo do barril quando ouviu a voz de Kaz. Seu corpo paralisou, sua cabeça se virando levemente apenas para encontrar um par de olhos, gélidos como a neve, a encarando. É claro que ele saberia que ela estava ali. Kaz sempre sabia.

Um silêncio se instalou por alguns segundos, que duraram uma eternidade. Inej respirou fundo, de repente sentindo que faltava ar em seus pulmões. A garota Suli sabia, de alguma forma, que não se tratava de ficar com os Dregs, de ficar em Ketterdam. Mas de ficar. Com ele. Era uma palavra que ela tanto temia, mas que tanto queria ouvir.

— O que mudou, Kaz?

Ele se levantou, caminhando até o parapeito da janela, onde Inej havia acabado de se sentar.

— Nada mudou. — Ele sussurrou. — E esse é o problema.

Kaz poderia jurar que estava sentindo os primeiros sintomas de um mal súbito. Seu coração parecia que iria sair pela boca, o suor era expelido por todo o seu corpo, os lábios ficaram secos como o mais cruel dos desertos. Todos esses sintomas o bombardearam no momento que ele sentiu que não estava sozinho. Que ela estava ali.

Ele não estava preparado para se virar. Movido pelo que achava ser saudade, havia tomado a decisão de dar o primeiro passo na direção de Inej assim que a visse de novo, mas temia pela chegada desse momento. E ele havia chegado. Kaz cerrou o maxilar. Sem armaduras.

— Você estava certa. Não há mais vingança. Eu destruí tijolo por tijolo, e só sobrou poeira no chão. — Kaz estava agora em frente à Inej, faminto pelos olhos grandes, redondos e intrigantes que examinavam sua alma. Eu não consigo mais parar de pensar em você, querer você, desejar você. Nada mais importa. Ele soltou um indício de uma risada seca. — Mesmo assim, eu prometi a mim mesmo que não iria atrás de você. Não seria junto acabar com sua liberdade só para dar um fim à minha miséria. — Inej franziu as sobrancelhas quando Kaz pegou uma de suas mãos e a colocou sobre a sua, coberta pela luva. — Mas você está aqui, agora. Eu preciso perguntar. O que você veio fazer aqui, Inej?

Ela poderia mentir. Poderia dizer que veio atrás de mercadorias exclusivas. Que veio coletar atualizações de informantes. Que veio até mesmo para pedir um favor ao maior bastardo que o barril já havia conhecido. Mas ela não queria mais mentir.

— Você. Eu vim ver você, Kaz. — Ela segurou com força uma das mãos de Brekker, como se elas pudessem se desfazer a qualquer momento. Como se a maré pudesse levá-lo para longe dela, como sempre fazia. Como faria de novo. A tristeza sorrateiramente inundou seus pensamentos e sua expressão. — Mas você sabe que a decisão de ficar não depende de mim. Nunca dependeu.

Kaz fechou os olhos. Aquela era uma verdade dolorosa, e ele tinha vergonha de admitir. Era cruel o paradoxo de sempre suplicar, mas sempre impedir. Sempre querer que Inej fique ao seu lado, e sempre ser o principal obstáculo que os impede de ter um final feliz. Mas não queria que o ciclo se repetisse mais uma vez. Ao abrir os olhos, direcionou o olhar para a mão que segurava os calejados, mas delicados dedos de Inej.

— Tire-as.

Inej acompanhou o olhar de Kaz, que encarava a capa escura que cobria sua palma, seus dedos, seu coração. O garoto já havia segurado sua mão sem as luvas antes, mas dessa vez era diferente. Inej sentia como se Kaz estivesse, pela primeira vez, abrindo a porta e convidando-a a entrar; não para um passeio, mas permanentemente. Como se estivesse solicitando que ela tirasse sua armadura. Sem armaduras. Quando Inej voltou a olhar para o rosto de Kaz, o encontrou já a encarando, sério e intransigente; de uma forma que qualquer outra pessoa pensaria que ele havia feito uma solicitação corriqueira, como enviar um recado ou receber uma encomenda. Qualquer pessoa, menos Inej.

Ambos sustentaram o olhar enquanto Inej lentamente puxava a primeira luva de Kaz com uma mão, enquanto segurava seu pulso com a outra. O garoto cerrou o maxilar, mas não permitiu que suas pálpebras cobrissem a visão que ele tanto ansiara por ter. Kaz abaixou a primeira mão, a garota retirando a luva da segunda.

— Eu vou continuar usando as luvas quando estiver no Clube, ou com os Dregs, ou em qualquer lugar que tenha outras pessoas. Até mesmo se eu estiver sozinho. — Kaz murmurou, a segunda mão, agora descoberta, pendendo ao lado do corpo. — Mas não vou mais usá-las quando estiver com você. — Ele engoliu em seco, surpreso pela incapacidade de desvendar o que se passava pela mente de Inej naquele momento. — É o que eu posso oferecer a você agora.

E você merece muito, muito mais. Mais do que eu posso te fornecer. Aquele era o espinho que se afundava cada vez mais em suas entranhas.

Inej pegou as duas mãos de Kaz, que fechou os olhos e cerrou o maxilar.

— Olhe para mim. — Ela sussurrou, seus polegares acariciando levemente as mãos de Kaz. Ele obedeceu, sentindo que uma simples solicitação ultrapassava qualquer resistência que sua mente poderia oferecer. — O dia que eu conheci meus pais. Você se lembra? Demos as mãos. Você me envolveu por trás. — É óbvio que ele lembrava. Era o que ainda o mantinha de pé. Ela se levantou do parapeito da janela e deu um passo à frente, ficando tão próxima de Kaz que ele podia sentir sua respiração. Ele assentiu. A respiração trêmula. Uma batalha incessante entre a agonia da proximidade e o desejo de acabar com a distância restante. — Você pode me oferecer mais do que isso. — Inej sorriu, e ele poderia emoldurar aquela visão, sem nunca se cansar. — Vamos ter todo o tempo do mundo para descobrir o que exatamente vai acontecer.

Mãos Sujas. O bastardo do barril. Respeitado por sua gangue, temido por todos os seus inimigos. Não importa do que o chamassem, nunca passaria pela cabeça de um cidadão de Ketterdam que, naquele momento, Kaz Brekker lutava contra todos os impulsos de cair de joelhos em frente à sua amada. Aquela, que em uma frase havia lhe dado tudo o que ele jamais achou que poderia querer. 

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⏰ Última atualização: Mar 20, 2023 ⏰

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Slow Hands. - KanejOnde histórias criam vida. Descubra agora