Calor entre lençóis

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∞∞∞

Nesses longos anos de uma jornada solitária e sem propósito, caçando para arranjar moedas sem valor apenas para sobreviver, eu jamais imaginei sentir aquilo novamente.

O poder. A forma mais voraz, da mesma maneira em que estava quando me obrigaram a transicionar. A pura e madura magia.

Era bom. O sentimento de ser eu mesmo de novo era absurdamente bom.

Ainda livre da camisa, sentado de costas para o espelho largo, eu não conseguia tirar os olhos da marca sem cor. Desfeita, mas ainda ali para lembrar-me de sentir raiva.

Lembrar-me do verdadeiro motivo dela existir.

Nasci com um poder inestimável, capaz de fornecer tanta riqueza e domínio para o meu povo, meus companheiros. Ter um guia de carne e osso era mesmo um perigo tão absurdo?

Eu a dedilhava com leveza, sentindo a pele alta da cicatriz.

A marca em meu antebraço ainda ardia um pouco, recente demais para ser absorvida por completo. Seus efeitos davam sinais. O cheiro da magia era diferente, carregava um odor mais doce, mais gostoso. Era ele.

O Diurnal. Meu guia.

Um ser tão surreal que era confundido com uma lenda irreal. Tinha tantas perguntas sobre essas criaturas.

-Você precisa comer. - indicou, surgindo no cômodo sem fazer nenhum ruído, mesmo assim eu fui capaz de senti-lo. O cheiro, eu sentia sei cheiro, sua presença. Parecia fazer parte de mim.

Pelo espelho o vi com uma bandeja nas mãos. O terno de veludo vermelho, com detalhes em cetim preto, desapareceu, dando lugar às vestes mais simplórias. Ele ainda se parecia com um rei.

Desde que pude imaginar seu rosto nas horas em que me deixou sozinho, não consegui evitar os detalhes.

Os cachos rebeldes do cabelo perfeito, numa tonalidade tão densa de castanho escuro. Seus olhos bicolores me aturdiam até em pensamentos. O dourado esbanjava seu poder, enquanto o vermelho ardia conforme sua sede.

Um vampiro ainda mais belo do que alguém poderia imaginar.

Sua altura era assustadora, os ombros largos, os músculos notórios. Ele era um pouco esguio, mas seria capaz de sair vivo de uma luta clandestina nas cavernas de Frernyias.

Me virei para ele, a tempo de encontrá-lo se ajoelhando no chão a minha frente, repousando uma refeição simples e apetitosa. Um lanche reforçado eu diria. Comidas leves e frutas, junto de uma caneca com uma bebida quente.

E como fez até agora, não olhava para nenhum outro lugar além dos meus olhos.

-Prefere mais uma vela? - perguntou, e antes que eu sequer pensasse em responder, os castiçais com velas se ascenderam, todos eles. Na ponta de meus dedos, o rastro das cinzas de uma magia de fogo fraca se apagava.

-Desculpe. - murmurei, envergonhado.

-São cortinas caras, tente não destruí-las. - murmurou, ainda me olhando.

-Você me esperou no vilarejo dos Dahlias, não foi? - disparei.

-Sabia que viria. - respondeu breve. -Lamento pela sua mãe.

O lampejo de um choro ardeu em minha garganta, então abaixei a cabeça. Estava cansado de chorar por ela.

-Foi a única que não teve as tripas arrancadas. - murmurei, engolindo as lágrimas insistentes.

-Você a amava, apesar de sentir repulsa de todos os outros. - disse, tomando meus olhos outra vez. -E mesmo tendo nada além de um ódio perverso, ela ainda era sua mãe.

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