DOIS

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Tentei não chorar quando fui me acomodando no carro do Daniel. Ele ajustou o retrovisor e ligou o rádio para que não fôssemos obrigados a preencher o silêncio com conversas. Só queria voltar para a casa e fingir que esse dia nunca existiu, o que era bem difícil, já que costumava acordar com uma mensagem carinhosa de Selena desejando bom-dia. Saber que não teria isso no dia seguinte, só me deixou ainda pior.

Decidi focar no trajeto, admirando as ruas de Grande Sunshine na esperança de me sentir menos merda. Apesar de tudo, eu gostava de morar ali, nosso país é dividido em três grandes ilhas chamadas: Ilha dos Anjos, Ilha dos Cisnes e Ilha dos Camaleões.

A Ilha dos Anjos era onde morávamos, tinha um formato muito característico de auréola. Nossa ilha se destacava pelos carros não poluentes, e possuir a sede principal de Christian, já que ele vivia perambulando por aí. Isso sem dúvida era o que eu chamava de privilégio.

— Eu tenho uma coisa pra te contar — sussurrou Daniel, desligando o rádio e interrompendo minha tentativa frustrada de me distrair. — E eu não sei como você vai reagir.

— Espero que não seja uma bomba porque sinceramente meu dia tá uma merda. Dá pra acreditar que ela terminou comigo por causa de um bando de viadinhos?

Ao invés de responder e me apoiar, Daniel simplesmente enrijeceu como se eu tivesse lhe dado um choque elétrico. Era de foder o apoio quase nulo que recebia do meu melhor amigo. Se eu dependesse dele para me sentir melhor, estaria ainda mais na merda.

— Eu queria que todos fossem presos! — Fiz questão de enfatizar o quão puto estava. — É o que tem de mais repulsivo na nossa sociedade, e agora tiraram a Selena de mim, enviados do capeta mesmo!

As mãos de Daniel estavam paralisadas no volante, sua expressão assustada, parecia que eu tinha surrado a cara dele. Se continuasse assim, era capaz de eu surrar de verdade porque minha paciência virou lenda.

— Você não tinha uma coisa para me contar? — perguntei já com ódio daquele mistério todo. — Desembucha de uma vez.

— Não era nada. — Pigarreou, ajeitando o colarinho da camisa. Seu rosto estava mais pálido do que o normal. — Deixa pra lá.

— Não há segredos entre nós. Se tem algo pra falar, fale logo.

— Amanhã eu conto.

A falta de firmeza em seu tom deixou claro que não me falaria droga nenhuma. E quer saber? Que se dane também.

— Chegamos — murmurou sem ânimo.

— Trata de melhorar essa cara de cu. Até parece que foi você que levou um pé na bunda.

Revirei os olhos e peguei minha mochila, passando a alça por um dos ombros.

— Victor! — chamou antes que eu abrisse a porta do carro. — Você...

— Fala logo, merda!

— Se precisar de mim, é só ligar.

Tive a impressão de que não era bem isso que queria falar, mas eu estava cansado demais para ficar pressionando.

— Que seja.

Soltei um suspiro pesado e saí do seu carro, batendo a porta com força. Espiei o outro lado da rua, onde estava a sede do presidente e fiquei ainda mais cabisbaixo em não vê-lo ali.

— Cheguei! — gritei.

Eu já sabia que meu pai estaria na mesa ocupado com as papeladas. Era um dos poucos da nossa família que conseguia trabalhar em casa.

— Oi, filho. — A voz grave do meu pai, Félix, me trouxe de volta à realidade.

Estava sentado em frente à mesa remexendo nos papéis.

Não sou heterofóbico [DEGUSTAÇÃO]Onde histórias criam vida. Descubra agora