De: Evellyn Nass'cartes
Para: Lispec V. "Vênus"
Dia 17 de Agosto de 1985
meu amor...
Temo pelo tom realista das palavras que se sucederão ao longo desta carta. Mas meu âmago suplica por um fim à forma destrutiva qual levo minha vida. Ademais, o mosaico de decoros que tanto ressenti em retirar dos eufemismos ficcionais e escapes da realidade quais escrevi para você, finalmente, acabou.
Há muito tempo que não te escrevo nada além de rascunhos jogados de lado. Na cruel realidade, percebo que nunca dediquei, a ti, um escrito que não fosse descartado pelo meu espirito de medo. Por isso, talvez, seja que, enquanto redijo esta carta, vejo-me à beira de um fatalismo mordaz. Isto é... Lis, o terror virou algo tão substancial à minha vida; de forma que temer torna-se tão mais regra quanto respirar a cada dia que se passa. E nisto foram-se embora inúmeras intempéries ladrantes por onde hoje habita meu peito. Foram-se incontáveis noites mal-dormidas com meus demônios açoitando-me. Tantas, que cansei do agora e tranquei-o fora de casa para nunca mais retornar. E blindei minha fortaleza com mundos inteiros de amores florais feitos em papeis envelopados sem endereço e destinatário. Entretanto, foram por incalculáveis mundos fictícios que vaguei. Foram por incontáveis e indiscritíveis experiências ilusórias que arrebateram o rubor das minhas bochechas. Tantas que, quando percebi que não sou aquelas palavras, e nem os fantasmas literários quais crio e me projeto, o conto de fadas que inventei nas cartas perdeu-se em meio à mórbida escuridão de não tê-la mais. Agora a realidade bate à porta.
"Por onde devo começar?". Essa é a questão que mais rouba do meu tempo quando escrevo nessas folhas tão tingidas pela amarelada falta de propósito. E respondendo-a, já não sei, mais, por aonde ir. Minha escrita, sempre adinâmica, sempre detestável, fatigada; ela não se passa de meias-palavras quando as releio pensando que são para você. E quanto aos sentidos? Aos Sentimentos? Palavras são, realmente, capazes de expressar estas coisas tão belas e etéreas quando qualquer significação alcança novos ares ao serem dirigidos a ti? Não é apenas fogo que arde sem se ver ou prisão que, por bom grado, desejo ficar; não é apenas ferida que sangra e não se sente. Não, não, não! Sinto-me culpada por nunca ter te falado as palavras que meu peito grita, e agora já é tarde. Sinto-me culpada por todas as cartas cheirarem cigarro, por estarem amareladas e manchadas pelo vinho derramado. Sinto-me culpada, e uma covarde, por nunca ter aceitado a realidade como ela é, de fato. Culpo-me de tudo, por tudo — em tudo —, mesmo que um mundo de diferenças e pesares separe-nos agora — e sabendo que, o que sinto, você não sente.
[...] Às vezes me vejo pensando em você, e o sorriso singelo no meu rosto parece ser a única coisa que nunca morreu. E isso também leva apenas um momento para desaparecer, tão puro e belo, numa simples lágrima, como o orvalho no alvorecer. Hm~n.
[...]
Ah!, Lis... Lis, Lis, Lis. Retiro os farelos dos pratos pela manhã lembrando-me daquela noite. Se tivéssemos tido apenas uma conversa, o caminho que segui entre seu sorriso e as palpitadas do meu peito poderia ter levado-nos a um final mais concreto. Um final diferente daquele qual pensávamos ter construído tão firmemente com o nosso amor. E ao invés de desmoronar, caminhariamos em trilhas de passifloras no rubro do amanhecer tão, tão jovial do Outono. Agora não foge da mente — nunca — a mesma pergunta que divido com o canto unissono dos pássaros e dos galos, os primevos raios do solares, os antecipados pensamentos amargos como café e os primeiros toques da melancolia entrando pela janela, junto dos ventinhos gelados do sol nascente: como vai seu dia, sua nova vida, longe, bem longe, de mim? Pois tenho tanta vontade de ouvir sua voz mais uma vez, Lis. Todos os dias, sim. Tão serena e gentil. Como faz tanta, tanta falta aos meus ouvidos! Ah!, que tempo cruel.
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Ágape
Short StoryEsta é apenas mais uma carta descartada pelo meu fantasma de orgulho. Elas, todas elas; sempre amareladas, sempre cheirando a cigarro - mas que desgraça! Imagino, sempre, o que pensarias de mim caso visse-as. Estas palavras me doem tanto o peito, me...