☾ C A P Í T U L O T R Ê S

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Todo o sangue do meu corpo parecia estar indo para um único lugar, e no momento, um lobisomem estava em cima dele, prestes a encostar.

A posição era humilhante. Se eu tivesse me distraído menos... Distração, sendo um caçador, era o pior cenário possível. Distração te matava.

Distração te fazia ser mordido e transformado em um monstro, como aconteceu comigo.

Ali, no chão do casebre com um novo monstro me prendendo contra as tábuas, eu não sabia se seria morto. Se quisesse terminar de uma vez o que começou, o lobo já teria agido. Será que era sádico? Será que já estava satisfeito com a mulher que acabara de matar?

Havia um corpo sem vida naquela casa, acima de nós. Não pude salvá-la, e pelo desenrolar da noite, eu não iria vingá-la, também.

Estava evitando olhar o monstro nos olhos. O vermelho de sua íris me escapava cada vez que eu olhava para as paredes, me debatendo, ou fechava com força minhas pálpebras. Ele sequer se mexia. O calor percorria o meu corpo, tensão vindo de lugares que eu não podia controlar — a Febre, o medo da morte, a frustração da caçada... o desejo. O maldito desejo.

Talvez fosse melhor aproveitar a chance de terminar com isso de uma vez. Um caçador inútil que escondia um segredo das pessoas que protegia, que também podia matá-las. Não é como se o vilarejo significasse alguma coisa para mim além de um teto alugado e um álibi que me ajudava a não ser sufocado pela minha culpa. Não havia me restado muita coisa desde a morte dos meus pais e irmã, nas mãos dos monstros que passei a caçar após a perda; não havia me restado muita coisa após ser mordido, e condenado a me corroer por dentro se não me deixasse levar pelo o que destruiu minha vida. Agora, certamente não me restava muita coisa mais uma vez, capturado pelo inimigo.

O lobo falou quando finalmente olhei em seus olhos.

— O que não entendo... — ele começou, seu tom calmo como se não fosse um assassino. — É por que você está me caçando, e não caçando comigo.

— Eu não sou como você — respondi mais rápido do que gostaria, lhe dando uma atenção que não merecia. Seu lábio fez o mais sutil dos movimentos, como se estivesse impressionado e com pena ao mesmo tempo. Ele caçoava de mim.

— Ah, cachorrinho... Com esse perfume e essa cicatriz? — ele inalou profundamente e apertou mais meus pulsos. — Eu acho que você é, sim.

A luta me deixava a cada palavra. Ele estava me desarmando? Como se já não bastasse ter me imobilizado e retirado minhas armas...

— Como sobrevive escondendo quem você é? — o lobo me perguntou. Suas sobrancelhas se franziram, como se buscassem por uma resposta.

Protesto com as pernas e braços e ele arregala os olhos por um segundo, mas a surpresa não é o suficiente para fazê-lo afrouxar o domínio sobre mim.

— Sabe o melhor jeito de lidar com a Febre, não sabe? — ele tenta novamente, como se meus esforços sequer o tivessem incomodado. Como se eu quisesse continuar conversando.

Me mexo com força mais uma vez, mas os movimentos não trazem o resultado que espero. Na verdade, trazem o que eu menos desejo.

Ele segura firme em meus pulsos e deixa todo o peso de suas pernas caírem sobre mim. Estamos ligados da cintura para baixo agora. Ele com certeza está sentindo algo em mim que não deveria, e o sorriso de dentes à mostra que me entrega é a confirmação

— Aaaah... — ele suspira e ri. Sinto sua cintura se movimentar lentamente contra mim. Engulo em seco. — Se em todo ciclo dela a lua cheia me trouxesse alguém como você...

Minha frustração rompe todas as barreiras da minha paciência. Com toda a força que tenho, tento empurrar o assassino de cima de mim, mas pareço lutar contra uma montanha. É em vão, e grunho de raiva. O som vem do fundo da minha garganta e arranha. É odioso, e me pergunto se é o caçador indefeso ou a besta contida que está se expressando.

O homem — monstro — em cima de mim lambe os lábios.

— O cachorrinho gosta de latir, não é?

— Eu não sou um cachorrinho! — protesto, ofegante.

— Ah, e o que é? — ele aproxima o rosto do meu. Consigo enxergar as pontas afiadas de seus caninos e o sangue secando no canto dos lábios. — Um caçador?

Um caçador o teria matado. Um caçador não estaria perturbado pela lua cheia.

É então que percebo que a resposta não é a que eu gostaria.

A luta me deixa. Se para fugir ou me entregar, vencer ou ser completamente destruído pela Febre e pela besta pressionada contra o meu corpo, eu não sei, mas deixo que minhas próximas palavras saiam como se eu não mais temesse pela minha vida.

— Eu sou um lobo.

O vermelho brilha em seus olhos.

— Então me mostre.


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⏰ Última atualização: Apr 13, 2023 ⏰

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