1. GOTEIRA

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12 ANOS DEPOIS.

O aroma do *Okonomiyaki quase pronto se destacava dentre as dezenas de barracas de comida, mas depois de três semanas comendo isso como parte do pagamento pelo trabalho de meio período que conseguira depois da faculdade, Kira finalmente estava enjoada da comida. Era o último pedido da noite. Tatsuo, seu namorado, já estava esperando do outro lado da rua, e vinha repetindo o feito pontualmente: mais 10 minutos e ela estaria livre.

— Um copo d'água, por favor.

Kira levantou os olhos para o último cliente, enquanto embalava os dois últimos pratos para viagem. Tatsuo havia implorado para que ela não dispensasse o Okonomiyaki, pois era sua comida favorita. Ela esquadrinhou o refrigerador sem paciência, a sola dos pés a essa altura já tinham drenado dela qualquer resquício de simpatia. "Um copo d'água? Sério?" Takashi, um senhor grisalho e de semblante austero, sumiu nos fundos da barraca. Um minuto depois ele voltou, trazendo consigo um copo de vidro com um sorriso encorajador no rosto. Ela sorriu de volta para o chefe e serviu a água.

Como se de repente a temperatura tivesse baixado, Kira sentiu um arrepio percorrer sua espinha, mas ela estava acostumada com o clima volátil da cidade grande. Não tinha apego nenhum ao passado como sua avó e seu pai, que ainda sentiam saudades da pequena vila no meio do nada. Ela mal se lembrava daquela tragédia toda. Foi então que se deu conta que o cliente estava parado, fitando-a com o copo d'água na mão. Ela olhou de volta, tentando entender, mas os olhos do homem eram duas esferas fixas, sua boca estava entreaberta e seu corpo não se movia de forma alguma.

— Você está bem? — indagou ela meio que por impulso. Olhou para o lado buscando o apoio de Takashi, mas ele estava lá atrás, arrumando as coisas para ir embora. — Senhor? — ela o tocou no braço e foi então que uma onda de calafrios se espalhou por todo o seu corpo de uma só vez. — Precisa de ajuda? — a voz saiu trêmula e a resposta veio em seguida: como quem acabara de despertar de um pesadelo, o homem jogou a água do copo contra Kira, que teve tempo apenas de fechar os olhos e soltar um grito atrasado. Quando abriu os olhos de novo, o cliente já havia corrido para longe, deixando seu pedido para trás.

 Quando abriu os olhos de novo, o cliente já havia corrido para longe, deixando seu pedido para trás

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— Mas pensa pelo lado bom, Kira. A gente saiu ganhando: dois pelo preço de um.

— Shhh! Fala baixo. — ponderou Kira. — Ela não pode saber que você tá aqui.

Eles subiram rápido para o quarto, mas não havia clima. A animação e as tentativas de Tatsuo não estavam surtindo efeito. Embora ele fosse quatro anos mais velho, ás vezes era imaturo como um adolescente. A bronca do Senhor Takashi ainda estava ecoando e uma sensação de medo tinha tomado conta dela, fazendo com que a cena do cliente jogando água contra o seu rosto se repetisse na sua mente. Nem mesmo os lambeijos de Susan, a gata persa e fiél companheira que ela havia adotado há 3 anos, estavam conseguindo alguma atenção.

— Você vai mesmo comer isso aqui?

Mas era tarde demais: o cheiro de Okonomiyaki já tinha se espalhado pelo quarto e Tatsuo estava com a boca cheia demais para responder e se desvencilhando das tentativas de Susan em roubar uma mordida.

— Você não pode dormir aqui. — ela dizia isso todas as noites, mas dessa vez ela queria que ele ficasse. Queria alguém para dividir aquele medo. — Meu pai volta amanhã bem cedo e...

Três batidas na porta interromperam a conversa que o namorado conhecia de cor: Yoshio saía para pescar aos fins de semana e voltava sempre antes do sol nascer. Era um hábito estranho pescar à noite, mas ninguém nunca questionava. Era talvez a forma que Yoshio encontrara de se lembrar das coisas. Embora o corpo de Ichiro tivesse sido encontrado naquela tragédia, o de Hana não teve a mesma sorte, e por fim os três integrantes restantes daquela família decidiram devolver o corpo ao mar para que Ichiro descansasse ao lado de sua mãe.

Tatsuo imediatamente escorregou para debaixo da cama e Kira foi atender a porta.

— **Batchan?

— Tem alguém com você, Kira? — a voz da velha Yoko era um sopro sereno e contido.

— Comigo? Ah... Não... Quer dizer...

— Não me refiro a Tatsuo. Sei que ele está aqui. — Yoko perscrutou o quarto do chão ao teto, apertando os olhos atrás dos óculos. — Hum... Uma presença estranha. — ela encarou a neta com a expressão de quem sempre sabia mais do que queria. — Ah... Quarto não é lugar de comer, Kira. — ela se virou. — Não é lugar de comer... — e foi embora em seu ritmo distenso, ritmo que só aqueles que estão prestes a alcançar um centenário possuem.

Depois de muito hesitar, Tatsuo concordou em ir pra casa. Havia coisas demais para se pensar e mesmo que o quisesse por perto, ela também queria descansar. As palavras de Yoko se misturaram no redemoinho de chateações que pairava sobre sua cabeça e apesar de conhecer bem a avó, aquilo tinha tornado tudo ainda mais tenso e estava fazendo aquela noite se estender mais do que precisava. "Uma presença estranha..." Ela desceu para a cozinha e aguardou o macarrão instantâneo ficar pronto. Era isso: comer e ir pra cama...

Kira estava quase acabando, um fio de vapor subia do caldo remanescente na tigela e seu estômago havia cessado os protestos sonoros, sua cabeça estava levemente inclinada no encosto da cadeira, numa das mãos ela ainda segurava debilmente o par de ***hashis, os braços amoleceram sobre a mesa e, enfim, uma sensação quente e reconfortante a tinha envolvido. Ela adormeceu ali mesmo. E então aquela coisa minúscula, brilhante, molhada e gélida se desprendeu do teto, mas Kira não a percebeu. O vapor da tigela sumiu, e o único vapor agora saia de sua boca, os pêlos dos braços se eriçaram e aquela gota d'água inesperada lhe atingiu os lábios.




*Okonomiyaki: espécie de panqueca japonesa frita com diversos ingredientes.

**Batchan: forma carinhosa de obaasan, que significa "avó" em japonês.

***Hashi: utensílios similares a pauzinhos ou palitinhos utilizados como talheres em parte dos países do Extremo Oriente, como a Tailândia, a China, o Japão, entre outros. São usualmente feitos de madeira, bambu, marfim, metal ou plástico.

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