Já era quase dia quando Kira viu os sapatos do pai deixados na soleira. A noite tinha sido cruel e suas tentativas de fechar os olhos e a torneira da banheira foram em vão. Por fim, ela havia desligado o registro de água da casa e decido com sua avó e a gata para o andar debaixo onde as coisas estavam secas. Yoko não esboçou espanto ou qualquer preocupação e havia adormecido tranquilamente no sofá. Mas para Kira a noite tinha sido a pior de todas, havia um tornado de ideias, medos e coisas estranhas que ela não conseguia parar de pensar e mesmo com os ronronados e carícias de Susan, dormir parecia impossível. Ela tinha conseguido, depois de vencida pelo cansaço, adormecer sobre o *kotatsu, mas seus sonhos foram confusos e cheios de sustos, até que um barulho a despertou. "**Otousan chegou."
Era um estampido continuo vindo do andar de cima. Talvez Yoshio estivesse consertando a torneira. Ela ficou meio aliviada. Meio aliviada, porque o que quer que tivesse causado aquele aguaceiro todo seria sua culpa. Era assim que funcionavam as coisas para ela. Seu pai a amava até certo ponto, um amor bem ponderado para alguém que perdera a mãe tão cedo. Das mágoas que ela guardava dele, a do dia em que ele se esqueceu do seu aniversário de 13 anos e fora passar a noite pescando na ilha, essa era a mais dolorosa. Yoko, como sempre tinha lidado bem com a situação e transformado a atitude de Yoshio em:"Ele não fez por mal, Kira. Ele te ama muito."
Kira então subiu sozinha, pisando descalça a água que descia em cascata pela escada, o sono de Yoko parecia pesado demais para que o barulho a importunasse. A porta do banheiro estava fechada e o barulho ficava mais intenso a cada passo.
— Otousan? — ela chamou por Yoshio.
Nenhuma resposta.
— Otousan, precisa de ajuda?
Mas ninguém respondeu de novo.
Kira parou em frente à porta e grudou um ouvido nela. Estava tudo quieto lá dentro. Os primeiros feixes de luz começaram a despontar pelos cômodos. Ela checou o quarto do pai cuja porta ainda estava fechada. "Estanho." De repente ela sentiu uma vontade incontrolável de correr; de não estar ali; de não se lembrar do que tinha visto e sentido bem atrás dela; e no momento em que se perguntou por que o barulho havia parado, seu celular tocou no bolso do seu pijama, fazendo-a soltar um grito.
Era um número desconhecido.
Ela hesitou um instante.
— Ah... ***Moshi moshi. — ela atendeu o celular. — Sim, é... é a filha dele aqui.
A voz do outro lado se apresentou como um delegado de polícia e começou a falar. E quanto mais falava, as coisas iam ficando mais tensas e menos claras. O homem estava tentando ser o mais cauteloso possível, mas em algum momento Kira percebeu a notícia iminente. Quando enfim o comunicado de que o corpo do seu pai havia sido encontrado sem vida e que as suspeitas eram de afogamento acidental, ela apenas conseguiu abaixar o celular lentamente e ficar fitando o nada.
Nada passou pela sua cabeça nesse momento; nada era exatamente o que ela conseguia fazer; nada podia ser feito a respeito do que ela acabara de ouvir.
Nada.
E então aquele estrondo veio romper o silêncio e o vazio que aquela ligação havia deixado. Kira acordou do transe e a porta do banheiro estremeceu de novo com mais uma investida. Ela gritou e se afastou de costas e então mais um ataque contra a porta e desta vez uma grande rachadura se abriu na madeira. O coração de Kira era um tambor descompassado dentro do peito. Ela se virou para correr, mas não pôde; ali parada no meio do corredor, sua avó esticou os braços de um jeito estranho, mas havia algo de errado com ela. Algo de errado com tudo ali. Talvez se ela saísse da casa, poderia voltar para a realidade e... Mais um estrondo e entre a porta surgiu uma silhueta equídea, a criatura bufou, fazendo vapor sair das suas narinas e boca e a temperatura parecia ter despencado 10 graus. A figura tétrica olhou na direção dela e seus olhos eram inteiramente de um negro vítreo e assombrado e aqui ela teve a certeza de que não estava em um pesadelo e que aquilo era também a realidade. O espectro de Raijin galopou na sua direção, Kira fechou os olhos e gritou, um relincho hórrido e ensurdecedor rasgou o ar e ela sentiu uma rajada de vento álgida transpassar seu corpo.
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Aguaceiro
HororA família de Kira é marcada por uma tragédia de muitos anos. Seu irmão mais velho era apenas uma criança quando foi encontrado sem vida na costa do vilarejo onde moravam. E mesmo após se mudarem para seguir com suas vidas, sua avó e seu pai não cons...