Ela acordou, mas não como quem acorda por conta própria ou com o despertador já programado. Seu sono foi interrompido de forma brusca e astrosa por algo que fez seu coração estrondar no peito. Kira piscou os olhos para o teto e mais uma gota veio lá de cima lhe beijar. Era gelada e salgada.
Salgada.
Ela piscou os olhos pesados para o breu da cozinha, mas o susto que levou em seguida foi como quem acabara de levar um tapa bem dado para acordar, levantou com um pulo, afastando a cadeira e sacudindo a cabeça. Onde deveria estar a tigela de *lámen, ela viu silhuetas de pés se mexerem. Ficou ali parada por alguns segundos, encarando a mesa e esses segundos pareceram horas. Os únicos sons audíveis vinham da sua respiração arfante e da goteira, que continuava caindo compassadamente do teto. Seus sentidos foram sendo despertados aos poucos. Não se lembrava de ter apagado a luz. "Estranho." Tateou as paredes da cozinha em busca do interruptor e respirou, aliviada, quando pôde enxergar a mobília. Não havia corpo nenhum ali. Mas havia, além da desordem ensonada; e ela só viera a perceber isso quando subia a escada para o andar de cima, um cheiro cítrico e enjoativo no ar; um cheiro que ela tinha certeza conhecer; mas ainda não conseguia dizer de onde; mais incômodo a cada degrau; aveludado; familiar e repulsivo; até que seu nariz o reconheceu com um espirro: "Incenso de cedro." Era o mesmo incenso que Yoko acendera no velório do seu irmão, de quem já não lembrava há muito tempo... De repente toda a cena da mesa atingiu suas memórias como quando se está andando e bate a cabeça em um objeto pontiagudo, mas ela evitou pensar na coincidência; hesitou deixar sua mente fazer qualquer ligação com algo sobrenatural; ignorou o arrepio atrás da nuca e a sensação de estar sendo seguida.
O som de água vinha do banheiro. Kira apertou o passo. Pelo barulho era apenas questão de segundos até que todo o corredor fosse inundado. Ela conseguiu pensar em poucas situações, mas eram trágicas o bastante: sua avó poderia estar desmaiada no banheiro; ou poderia ter infartado; ou... O forte cheiro de incenso de cedro chegou a seu ápice e ela não aguentou, em meio a espirros descontrolados, ela girou a maçaneta e então tudo a sua volta se condensou em uma atmosfera onírica. A silhueta se moveu atrás da cortina, a água havia transbordado da banheira e o chão estava alagado.
— Batchan? — a silhueta se movia de forma lenta, era possível ouvir a respiração pesada, mas ninguém respondeu. — Batchan? Está tudo bem? — o arrepio saltou da sua nuca e deslizou por toda a sua espinha e a voz de Kira se tornou um sussurro trêmulo. — Batchan?
A cortina deslizou com seus ganchos metálicos, mas ninguém se levantou da banheira, pois não havia ninguém lá. Ela sentiu algo vindo na sua direção, viu os passos invisíveis se arrastarem pelo piso inundado e passar por ela rumo à porta. As pernas demoraram a obedecer, era como se de repente ela tivesse esquecido como se andava, ficou imóvel com um grito engasgado. Havia vapor saindo da sua boca e a coceira no nariz era tão intensa, que ela não aguentaria segurar o espirro por muito tempo. Levou as mãos no rosto para abafar qualquer som como se a criatura invisível não conseguisse vê-la ou ouvi-la e espirrou.
— Kira? — a voz vinha de trás.
Ela gritou. E em seguida reconheceu a voz de Yoko.
— Você também sentiu? — havia entusiasmo na voz da avó. — Você também sentiu, não foi?
— Batchan, eu...
— Vem. — Yoko puxou a neta pelo braço. — Eu sei que é ela dessa vez, Kira.
Antes que pudesse responder qualquer coisa, Kira foi levada com uma empolgação evidente nos passos mais apressados da avó. Há muito tempo ela não fazia aquilo e há muito tempo também ela não via aquele brilho nos olhos de Yoko. Pelo cheiro forte de incenso vindo do quarto, era evidente que Yoko estava mais uma vez tentando contato com o mundo espiritual, como sempre fizera depois da tragédia que tinha levado sua filha e seu neto. Kira não queria acompanha-la e ter que ouvir mais um relato sobrenatural ingênuo, mas dessa vez a situação era outra. Ela sentiu algo pesar sobre os seus ombros, como se de uma hora para outra alguém tivesse jogado uma mochila nas suas costas. Yoko parou na porta do quarto e fez sinal para que Kira aguardasse, o incenso de cedro tinha tomado o quarto todo e era impossível parar de espirrar. Ela pensou em pedir para a avó apaga-lo, mas mesmo que não tivesse confessado, ela também sentia uma presença, de modo que, essa sensação a fazia espiar por cima dos ombros de minuto em minuto.
Yoko veio de lá de dentro trazendo uma caixinha em suas mãos enrugadas e trêmulas. Ela apertou os olhos para Kira, talvez esperasse algum entusiasmo vindo dela, mas naquele momento tudo o que ela tinha a oferecer era um nariz vermelho escorrendo e uma expressão confusa. Yoko destampou a caixinha de presentes e tirou uma mecha de cabelo amarrada por uma fita fina de cor vermelha e uma peça de roupa branca, que Kira não conseguiu discernir à primeira vista.
— Eu encontrei isso há dois dias. — começou Yoko. — Yoshio deve ter guardado de recordação. Veja.
A primeira coisa que Kira fez foi reprender mentalmente a avó pela atitude de bisbilhotar as coisas do pai, mas não conseguiu esconder a curiosidade e a surpresa quando olhou mais de perto os objetos. A mecha era de um cabelo preto espesso e media uns 5 ou 6 centímetros e a peça de roupa era uma cueca branca um pouco amarelada. Eram pertences de Ichiro. E era tudo o que havia dentro da caixa de papelão ornamentada.
— Uma mecha de cabelo da Hana e a cueca de Ichiro, certo?
Kira não ousou responder. Pelo pouco que ainda se lembrava da mãe nas fotos remanescentes que o pai não escondera, aquele cabelo curto não era de Hana. Ela tinha cabelos longos e finos. Além disso, talvez fosse pela emoção, mas Yoko ignorava que o corpo de Hana nunca fora encontrado. Muitos corpos tiveram o mesmo destino que o da sua mãe naquela noite e nunca foram encontrados. Isso tudo passou pela cabeça, mas para o seu alívio ela não precisou dizer essas coisas e tirar o sorriso no rosto da avó, pois a água chegou ao corredor e molhou seus pés no momento em que iria abrir a boca.
Ela foi até o banheiro e fechou a torneira da banheira. Ficou aliviada por ter algo com o que ocupar a mente. Ela já tinha girado a torneira de latão o suficiente e mesmo assim a água continuava a jorrar, e ao contrário do que deveria acontecer, o fluxo de água começou a aumentar. Ela sentou no chão inundado e se debruçou sobre a banheira, e quanto mais fechava a torneira, maior era o fluxo. Seu pijama estava encharcado e o desespero começou a tomar forma, e foi então que ela sentiu aquela presença sinistra de novo. Atrás dela o som de passos entrando e saindo da água era nítido, ela queria se virar para ver, mas alguma coisa dentro dela a impediu. A presença se solidificou em algum ser, que parou de pé bem atrás dela. Kira ainda estava no chão, decidindo se tinha coragem o suficiente de olhar para cima, mas o máximo que conseguiu fazer foi esguelhar as pernas do intruso. Era uma pele inchada e anfíbia, de um branco lívido e esverdeado. Ela ouviu a respiração arfante e pesada da criatura, que fedia a enxofre. Foi como estar se assistindo de fora do corpo, ela se via sentada no chão, como uma garotinha que acabara de cair um tombo e ficara magoada com o joelho ralado: não conseguia se levantar e tomar qualquer atitude. Depois de longos segundos que pareceram intermináveis, com a mesma rapidez que o ser havia se materializado, ele se foi sem deixar rastro.
*Lámen: prato composto por um tipo de macarrão chinês, uma sopa com caldo à base de ossos de porco, peixe ou frango, e temperados com molho tarê.
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Aguaceiro
TerrorA família de Kira é marcada por uma tragédia de muitos anos. Seu irmão mais velho era apenas uma criança quando foi encontrado sem vida na costa do vilarejo onde moravam. E mesmo após se mudarem para seguir com suas vidas, sua avó e seu pai não cons...