capítulo único.

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A brisa sob minha pele causa arrepios e a umidade me faz espirrar. Glorioso seja o estado de São Paulo! Seu clima tão, ou mais, oscilante quanto seu moradores me dá nos nervos. Quando saí, hoje pela manhã, o sol e o calor incrustavam todo o meu corpo, e, por isso, vesti apenas uma regata e um pequeno short, sem falar nas havaianas brancas que sempre me acompanham. Agora, acho que vou morrer de tanto frio.
Ouço barulhos a minha esquerda e em meio a confusão mental, sinto-os antes de vê-los. Droga. Droga. Droga! Começou á chover. Corro pela avenida a procura de um local, qualquer um, em que pudesse me esconder da água porém quando encontro, já estou ensopada. O ponto de ônibus aguarda e me sento, mais uma vez derrotada pelos detalhes paulistas.
Em minhas costas, sinto algo queimar e quando me viro, vejo seus olhos me fitando, um sorriso maroto cobre teus lábios. Garota maluca, vês algo engraçado aqui?. Á olho com ar de graça, sarcasmo e confusão, na verdade, não sei ao certo. Ela sorri mais uma vez e senta ao meu lado. Não. Não. Não. Abre a boca e sinto que meu dia está prestes á piorar.
-Ei, acho que seu chinelo quebrou.- Seu olhar desce até encontrar meus pés, olho na mesma direção e vejo. Eu estava certa, o dia realmente ia piorar. A Creusa quebrou. Ela 'tá arruinada. Nenhum preguin da jeito. Enfurecida, á jogo no lixo ali perto.
- Você não fala muito- Constata e ignoro-a porém a mesma não se cala. Jesus! Me perdoe se a encontrarem abaixo de um carro qualquer.- E também não é muito educada. Prazer, meu nome é Helena, mas pode me chamar de El. 'Tá tudo bem?- Diz dando uma piscada, o sorriso ainda em sua face.
-Laura. Valeu. Não muito, 'tô cansada, duas semanas aqui sugaram todas as forcas em mim existentes. A cidade é sempre assim?- procuro no bolso meu celular, porém, o mesmo não liga. Me frustro e quero chorar, me sinto esgotada.
Ao ouvir-me, Helena chega mais perto. – Assim como? Conturbada? É, é sempre assim. Acho que com o tempo me acostumei, afinal, nasci aqui. Hm, você precisa relaxar um pouco.- Diz, pegando o celular. -Precisa de algo?.
-Se você tiver uma blusa reserva, eu agradeço.- Retira de sua mochila uma blusa de botão rosê e fones do ouvido porém me entregando apenas a blusa e um dos fones- Toma. Eu não sou muito boa em consolar pessoas. Mas musicas são. É Caetano, você tem cara de quem gosta – O coloco em meu ouvido e pouco á pouco, a melodia de ‘’sozinho’’ toma conta de mim. É, acho que ela quer me ver aos prantos.
Parecendo ler minha mente, a garota responde- Não me olhe desse jeito. Por mais que eu os ache bonitos, seus olhos parecem que vão me inundar á qualquer momento. Quer escolher a música?.
Pego seu celular e dentre as músicas baixadas, não vejo uma ruim, coloco no aleatório e “Cecilia” começa á tocar justo quando sua cabeça toca meu ombro, como um maldito clichê.
O tempo passa e quando menos espero, a chuva para, pouco tempo após o celular descarregar e continuo ali, junto á ela, mesmo que minha casa seja á poucos minutos. -Acho que ela foi embora, você acha que ela volta?- Nego, enquanto ela se levanta, me oferecendo a mão. Aceito e me levanto.- O próximo ônibus só passa daqui á umas duas horas. Você ‘tá livre?.
-'tô. – seu semblante se ilumina e tenho certeza que o sorriso nunca sai de sua face. Assim como os olhos negros, quase obsidianas, marcantes, a curva em seus lábios finos era sua marca registrada.- Acho que cair no sofá e ver meu gato não seja uma tarefa de extrema importância.
-Ótimo! Vem - ainda com suas mãos nas minhas, começa á correr. Céus, ela vai acabar me enlouquecendo. Sem opção, a sigo, ou melhor, sou puxada. Passamos entre diversos carros, corremos por diversas ruas, passando por uma rua deserta, quase alagada e ela para abruptamente, me fazendo esbarrar em seu corpo. – Chegamos. Pode ir primeiro.- ao notar minha confusão, explica- O melhor da chuva são as poças. Acho que você merece se divertir um pouco. Pula.
-Nos vamos pular em poças d’agua AGORA?- é, foi uma péssima ideia segui-la, essa menina é maluca. Dou dois passos para trás e paro, a encarando.- Você só pode estar de brincadeira. Quer que eu pegue alguma doença? Não. Não. Não. Acho melhor eu voltar para o ponto. Surpreendente te conhecer. Adeus.- Mal termino a frase e a garota pula na agua, esguichando pingos em minha blusa.
- Para. Você vai só criar anticorpos, ou, no máximo, pegar uma gripe. Tive o trabalho de procurar várias poças pra você- só percebo tardiamente, ela para em frente a mim. Encaro seus olhos e acho que me perco. Maldito abismo. Ela coloca suas mãos em minha cintura, engulo em seco e dou um passo junto á ela e mais uma vez, sorri, me puxando. Seus pés encontram a água uma, duas, três vezes e me dou conta, não é só ela que pula, meus pés estão ensopados.
- Sabe, quando pequena, eu morria de medo da chuva, achava que iriam aparecer bichos, ou iria adoecer, me recusava á dar um passo para fora de casa. Meu pai, observando isso, me comprou uma galocha amarela e me levou para fora.- Olho para seus pés, e, pela primeira vez hoje, eu sorrio. Como criança, seu all star é amarelo, tão sujo ou molhado quanto poderia ser.- E ficamos assim como eu e você, pulando nas poças. Rindo. Hoje, gosto mais da chuva do que do sol.- Sinto o toque de sua mão morna em meu rosto, o acariciando. Seus olhos pairam em minha boca e sua outra mão, ainda em minha cintura, aperta de leve. Sinto sua respiração em meu ouvido enquanto fala. -Gosto ainda mais quando tem alguém comigo.- Seus olhos me fitam, fazendo-me arrepiar e suas pupilas, quase imperceptíveis, dilatam. Seus lábios tocam os meus, de relance, rapidamente e durante aqueles poucos segundos, sinto que está correto, que o tempo nessa cidade valeu a pela e que tudo naquele dia de merda, havia me levado até aquele momento.
Ela me solta, se distanciando um pouco. Sorri e me olha maliciosamente, dando passos para trás e não sei como, ou porquê mas me vejo indo atrás dela, mais uma vez.
Meu corpo vai de encontro ao seu,  instintivamente e minha boca encontra a sua, nossas línguas entram em sincronia e sinto meus batimentos cardíacos acelerarem. Suas mãos vão de encontro ao meu pescoço, á minha nuca e a sinto puxar levemente meus cabelos ao mesmo tempo em que toco, aperto e aprecio seu corpo, agora prensado em uma parede qualquer.
Termino o beijo com um mordiscar em seus lábios inchados e continuamos coladas, ambas as respirações rápidas. Encaro sua mochila atirada no chão surpreendentemente seco da faixada da loja, me perguntando em que momento ela foi parar ali e ouço sua voz, mais uma vez.
-Acho que as poças estão nos esperando- Me deu a mão e pela primeira vez, a vi tímida. Aceito, me levantando enquanto ela se abaixa e tira seus sapatos e a encaro, estranhando. -Os sapatos estão encharcados e você não deve ser a única descalça. Vem.
Voltamos as poças, e sinceramente, não faço ideia quanto tempo ficamos ali, naquela rua estreita e alagada. Pulando, rindo, trocando experiências e colidindo, várias e várias vezes Acho que volta a chover e pensando bem, não me importo. Seu sorriso é mais do que o suficiente. Nós somos mais que o suficiente.
Parecemos duas crianças rodopiando pela rua, ela, mais ainda. Sua pele branca brilha quase translúcida em meio á chuva que nos molha, não sei como ou porquê, mas ela parece inabalável enquanto pula em poças escuras, tão parecidas com tuas orbes, contrastando com sua pele.
Encharcadas, completamente encharcadas. É assim que nos encontramos. E por mais que esteja frio, meu sangue ferve quando sua boca cobre a minha.
-Ei.- Ela volta á prestar atenção em mim.- Me fala que você tem um plano. Acho que vamos pegar uma hipotermia se continuarmos aqui.
-Olha, meu apartamento é aqui perto. Eu não quero me despedir agora. Você quer?-Ela nega e dessa vez, eu que sorrio- Se quiser, podemos ir pra lá. Prometo lhe surpreender, aceita? Juro que não sentirá frio- encara-me de cima á baixo, seus olhos fixos em minha pele faz com que todo meu corpo acenda, de cima á baixo. Ela diz que sim, enquanto pega sua mochila e me puxa para perto. Corremos mais uma vez, porém dessa vez, com destino e intenções já decididas.
São Paulo é completamente cheio de surpresas. Minhas roupas acabaram de qualquer jeito no chão do apartamento naquele dia. Acho que atualmente o frio não me afeta mais. Pulo em poças as vezes e o imprevisível é meu amigo. Me acostumei e passei á gostar de tudo isso.
O abismo é surpreendente. Pulo de sua margem e caio em águas aquecidas, beijos molhados e sorrisos de canto. E agora, tenho a mais absoluta certeza, nunca foi tão fácil enlouquecer.

Abismos e poças d'água.Onde histórias criam vida. Descubra agora