1 - O Frágil Corpo em Queda

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"Você disse mesmo que preferia morrer do que viver sob a influência de uma pessoa assim, não é?" Sussurrou Berlie, numa voz baixa e rouca, que lhe soou como um vento distante, num pensamento aterrador em meio a noite obscura.

Porém, encarando o reflexo do que seria uma estranha lição de moral, não sentia sinceridade, não sentia o mínimo de eloquência. Era só um sorriso entristecido, de quem tem muito a dizer, porém não disse nada. Uma frase sem sentido ao ar, um resquício de um momento terrível e imutável, flutuando inocentemente como a fagulha de um incêndio que teimosamente se recusava a apagar. Kenny suspirou pesadamente, as mãos afundando no casaco tão fundo como se fosse achar aquelas mesmas palavras desenhadas no pedaço de papel amassado entre os dedos.

Havia horas que retornara, não sabia como manteve-se sóbrio até ali, ainda assim, sentia como se dissocia-se, porém não estava bêbado, milagrosamente. Seu corpo tremulava, mais e mais, enquanto sua mente enxergava ao longe, muito longe, como se fosse uma audiência de si mesmo. "É assim que a solidão deve se assemelhar?".

Seus olhos desviavam para qualquer lugar, através da rua, da noite estrelada, e o mundo que adormecia, círculos de luzes se tornavam faixas, então feixes finos, se unindo, ao ponto da escuridão vir e estalar ríspida como um tapa repentino.

Tudo se apaga. O mundo desabou. Kenny Saint estava ali, em carne e osso, até simplesmente não estar mais.

Mas como seria possível? Sentia-se tonto, úmido, a garganta seca de um grito seco e intenso preste a explodir. De repente ele está tão longe e tão perto, como as ondas do oceano que jamais descansam, sua mente oscila, os olhos lacrimejam, vislumbrando o mundo explodir num último segundo de terror.

Por que foi subir aquelas escadas?. O pensamento raspava na mente como bala perdida. Por que ele sempre tomava as piores decisões? Era sua essência. estar na hora certa a tornava tão errada quando a pior das decisões.

Há pouco tempo estavam fumando despreocupadamente em sua casa, ria da própria desgraça após mais uma briga estúpida com Gabriel, e Berlie chacoalhava aquela taça de champanhe como se estivesse comemorando alguma coisa, então vê um par de olhos úmidos, Berlie e Jennifer se encaram, Kenny ficou ali, estático, alternando o olhar entre as duas; num misto de desafiador e instigador, as duas manuseando aquele mistério no ar, uma bola pequena de neve com capacidade para uma tempestade. Nunca sabia o que fazer diante daquelas duas, Gabriel saberia, mas infelizmente, eles jamais seriam parecidos.

Infelizmente, ele sequer teria tempo para tentar uma segunda vez, ou diria até, uma primeira vez verdadeira.

O mundo estalava em vermelho e fumaça. Kenny rola os olhos e aperta a barriga, retornando ao presente. Constatou surpreso e confuso que Berlie não estava ali, e tampouco Jennifer. "O que estou pensando? Eu sai da casa de Berlie há meia hora atrás", riu, cuspindo sangue entre os dentes, um cuspe fino até se metamorfosear numa tosse torrente. A solidão o prensava como a neve intensa no para-brisa do carro de uma noite escandalosa. Há poucas horas eles apenas discutiam, e riam, agiam estupidamente como qualquer típico adolescente clichê. Tudo ia bem.

Berlie andava como uma sombra em suas memórias, puxando as cortinas, desorganizando os móveis, como um ruído impertinente atravessando seus pensamentos. Ele jamais a odiaria como Bárbara, mas entendia porquê. Berlie era destrutiva, escorregadia e espessa como veneno. "Mas eu sou tão diferente assim?", riu roucamente, sentindo o gosto metálico de sangue preencher a boca. A lua ouvia com atenção os últimos minutos de sua mente moribunda. Sua mente o levou até Gabriel, os olhos tão úmidos que pensou estar chovendo. "Deveria tê-lo ouvido. Ele sempre sabia de tanta coisa... Ele sempre estava disposto... A me ajudar.".

Entre Nós e a Fagulha;Onde histórias criam vida. Descubra agora