Era para ser Pollyanna, assim como no livro. A menina que sempre vê um lado positivo em tudo.
Minha mãe leu o livro e se apaixonou. A primeira menina, lógico, ganhou o nome da personagem.
Mas, como no fundo nasci sob a regência de Murphy, logo de cara, as coisas começaram a sair errado. O oficial do cartório, fã ardoroso das letras brasileiras, não admitia registrar nomes estrangeiros. Papai, cansado, depois de uma longa noite sem dormir e com os dedos quase quebrados devido aos apertos da mamãe, na hora do parto, não estava com muita disposição de procurar outro cartório. Então, ficou Poliana, brasileiro mesmo, sem dobrar eles, enes e y que isso é coisa cafona demais, disse o oficial de cartório.
Mamãe, ou melhor, D. Carminha, ficou fula. Uma semana inteira sem falar com seu Arlindo, meu pai. E só se acalmou, quando a irmã, também eximia jogadora do contente, explicou que a vida seria bem melhor para mim, pois não teria que ficar explicando que meu nome era com dois eles, enes e um y.
Convencida do fato perdoou Seu Arlindo. E a paz reinou por uns tempos naquela casa.
Por uns tempos, porque D.Carminha era filha de italianos, dada a brigas tempestuosas e cheias de gestos, Seu Arlindo, espanhol por descendência, também era afeito a explosões repentinas. A combinação dos dois dava a minha casa uma estranha mistura de Faixa de Gaza e Ilha da fantasia.
Intercalando momentos de extrema calmaria, com outros de gritarias em diversos idiomas.
Foi nesse ambiente que cheguei a adolescência. Um palito, cheio de espinhas e cabelos ouriçados. Verdadeiro espantalho. E não estou exagerando não, espantalho foi meu apelido até os dezoito anos, quando finalmente consegui ganhar peito e bunda. E altura também. O que me fez ter um outro problema, que, aliás, persiste até hoje. Sou desengonçada.Meu andar é uma mistura de marreco manco, com um potro estabanado. Vivo quebrando coisas, em mim e dos outros. Já teve ocasião da minha perna ser um roxo vibrante, de tanto hematoma. No colégio, vivia acertando o extintor de incêndio, estrategicamente colocado na curva da escada.
Por mais que estudasse lá desde as primeiras letras, não lembrava nunca do extintor e várias vezes abri o supercílio nele. O que me fez ter uma dezena de cicatrizes na sobrancelha, transformando-a em um emaranhado de pelos indomáveis em algumas áreas, com amplos desertos em outras.
Outro problema é que nunca fui muito popular. No jardim, era aquela criança esquisita, quase esquálida, incapaz de colar um desenho no lugar certo, ou desenhar um sol numa campina. Mamãe achava que a coisa ia melhorar no ginásio. Ainda acreditando no jogo do contente, tinha a certeza, de que a criança apagada da infância iria dar lugar a uma adolescente deslumbrante. Meio patinho feio, virando cisne.Pois o pato virou um marreco desastrado, que acertou um vaso de planta na cabeça da garota mais forte e popular do colégio. Deixo claro, que foi sem querer. Estávamos fazendo uma espécie de horta na janela, experimento de algum professor ensandecido, e num dia qualquer, desses com pátio cheio e calor demais, esbarrei em um dos vasos, que foi certeiro na cabeça de Luana que subiu as escadas pronta para me matar. Eu, que nunca fui muito afeita a confusão, fugi, é claro. Mas, no meio do caminho tinha o aparelho dentário de Wanda e, até hoje não sei como, prendi a blusa no dito cujo.
Enquanto tentávamos me retirar do aparelho, Luana chegou e acertou meu nariz, e fiquei mais de uma semana, falando "abim", em um analasado terrível.
Desse episódio, a única coisa boa, olha o jogo do contente de novo, foi que fiquei amiga de Wanda, que acabou sendo a madrinha do meu casamento e da minha primeira filha.A coisa ruim, Murphy não deixaria por menos, foi que todas as garotas populares passaram a me chamar de espantalho e rir de mim, sempre que tinham oportunidade. E é bom dizer, que foram muitas as que surgiram depois desse dia.
Eu também não era uma desportista nata. Na verdade, eu não era nem um pouco desportista. Mas, o sádico do professor de Educação Física, achava que ninguém seria um ser humano de verdade se não fosse. E me empurrava para jogar vôlei - quebrei um dedo nessa ocasião - handebol, dessa vez foi o nariz, que já não era mais o mesmo, desde o episódio com Luana. Para não dizer que eu era um desastre completo, até que era razoável na corrida, nada que merecesse um destaque, mas pelo menos disfarçava a minha inaptidão para a coisa. E garantia minha nota na matéria.Passada a infância e a adolescência no fracasso total. Restava a D.Carminha sonhar com minha vida adulta. Quando, é claro, o patinho feio viraria o esperado cisne. Esperanças que ela viu irem por água abaixo, quando aos dezenove anos, contei no café da manhã, que estava grávida.
Foi a pior tempestade que já tinha visto. Papai quase teve uma síncope, mamãe chorando o tempo todo. Tia Zuleide, a irmã de mamãe, teve que novamente intervir e conseguiu um lado positivo mais uma vez, fazendo-me casar com o pai da criança, Adalto, o vizinho e responsável por aquela tragédia familiar.
Não que não gostasse de Adalto, se não gostasse dele, não estaria com um filho do mesmo na barriga. Mas não sei se queria ou não casar, nem sei se queria mesmo aquela criança. Como
aborto, além de ilegal, era coisa inadmissível para aquela família, sobrou o casamento. Com direito a véu, vestido branco, grinalda e toda a tradição possível e imaginável.
Depois de casados, fomos morar num quartinho de hospedes que tinha na casa de meus pais. Quatro meses depois do casamento, nasceu Liliana, uma adorável garotinha de cabelos e olhos pretos como os do pai, mas com o temperamento da minha família.Liliana conseguiu o que eu já não tinha mais esperanças de obter, o perdão de D.Carminha e Seu Arlindo. Que se transformaram nos avós mais corujas e bobões que ela poderia ter tido.
Tudo muito bem, tudo muito bom. Exceto é claro, por que a vida não é um romance cheio de finais felizes, na verdade, tenho cá para mim, que Deus é um Ser extremamente brincalhão, e de vez em quando, entediado, resolve transformar nossa vida. Não um mero sacolejar, mas uma revirada completa, assim tipo montanha-russa, looping total.
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Poliana em Tempo de Crise
RomanceA personagem homônima da famosa Pollyanna, descobre que o Jogo do Contente é uma farsa e para sobreviver a um divórcio, um desemprego e cuidar de duas filhas tem que ter muito rebolado, humor e coragem.