Survival

Capítulo 2 - Memórias.

"Quando foi que ela ficou tão grande?" Davi perguntou enquanto Roberto mostrava uma foto da filhinha dele. O helicóptero onde ele estava voava alto levando os quatro soldados de volta a base. O homem segurava o celular sujo com um sorriso de orelha a orelha. "Ela não tinha completado seis meses à dois dias atrás?"

"Tá maluco, fi'?" Roberto respondeu logo após guardar o celular, ainda sorrindo. " 'Cê fica moscando aí, ela já tem dois anos!"

"E você não perde tempo..." O outro soldado, Felipe, provocou enquanto arrumava os aparatos médicos dentro da mochila.

"Davi, de olho no chão. Foco, Roberto." O quarto homem chamado Marcos repreendeu em tom sério. Ele estava segurando uma bolsa de gelo que colocava em uma parte do joelho. Os quatro estavam voltando de um confronto acirrado onde felizmente eles tinham saído com poucos ferimentos.

"Seguinte, eu não tenho culpa se você é um frouxo que não consegue chamar ninguém pra sair." Roberto disse enquanto ignorava o aviso de Marcos. "Toma vergonha na cara e liga pra Letícia!" Ele apontou para Davi e Marcos e prosseguiu: "Vai querer terminar que nem esses dois?"

"Eu tô sozinho por escolha..." Davi tentou se defender.

"Sei..."

"E meus assuntos pessoais..." Marcos se juntou a Davi na defesa, mas foi interrompido por Roberto.

"Ficam em casa, trabalho é trabalho e blá blá blá.... Rebobina a fita, pô!"

"Estamos já na metade do caminho." O copiloto do helicóptero se virou e avisou. Uma das cidades da região já podia ser vista minúscula no horizonte. Davi ainda tentava processar tudo que tinha acontecido na trincheira. Ele viu muitos dos outros soldados morrerem, e a adrenalina que tinha assumido o corpo dele na hora já tinha se dissipado. Davi tentou se acalmar apertando o relógio do avô, que estava no bolso da calça. Ele percebeu que enquanto Felipe ajeitava o kit médico as mãos dele tremiam. Ele suava frio.

"Ei..." Davi sussurrou para Felipe, tentando não chamar a atenção dos outros dois que tinham uma discussão intensa sobre relacionamentos. - Já acabou, a gente precisa do nosso médico cem por cento.

"Eu sei..." Felipe respondeu, cabisbaixo. "É só que... Eu não sei se quero mais essa vida..."

"Você acha que alguém quer isso?" Roberto tinha deixado de discutir com Marcos e estavam escutando a conversa. "Além das duas criaturas aí...  Qualquer coisa a gente pede logo a dispensa e bora fazer outra coisa da vida! 'Cê pode chamar a Letícia e..."

Ninguém viu um soldado inimigo mirando um lançador de mísseis direto para o helicóptero.

O projétil deixou de acertar Davi por centímetros.

E o helicóptero caiu.

Tinha fogo por todos os lados. O helicóptero tinha sido completamente destruído e vários pedaços estavam espalhados pelo chão seco. Davi, por algum milagre, estava inteiro e consciente. A visão dele estava turva e a fumaça não o deixava respirar direito. Davi tentou gritar pelos amigos, mas a voz dele não saia. Ele se levantou e cambaleou pelos destroços procurando alguém, mas ele só ouvia o barulho do fogo derretendo o metal e se espalhando pelo mato. Sangue pingava das roupas dele, mas não era o sangue de Davi. 

Eles estavam mortos.

''É tudo sua culpa.'' 3 Vozes ecoavam na cabeça de Davi repetindo diversas vezes a mesma frase: ''É tudo sua culpa! É TUDO SUA CULPA!''

E então, Davi acordou.

O brilho da tela do celular na cama era a única coisa que iluminava o quarto escuro.  Davi estava encarando o teto e suava frio. A cada dia que passava os pesadelos ficavam mais frequentes... Mais reais. Davi podia sentir o fogo morno na pele e o cheiro de carne queimada toda manhã que acordava. Davi apertou agressivamente o botão de ''desligar'' do alarme do celular, não tão forte para quebrar a tela, mas o suficiente pra deixar mais evidente os rachados que haviam no vidro do aparelho. Ele secou o suor da testa com as mãos e sentou na cama. Davi podia ouvir alguns vizinhos acordando e a porta da vendinha da esquina sendo aberta enquanto todos prosseguiam com as suas vidas.