Segundo anunciam ideólogos alemães, a Alemanha passou nos últimos anos por uma revolução sem paralelo. O processo de decomposição do sistema de Hegel, iniciado com Strauss, transformou-se numa fermentação universal para a qual são arrastados todos os "poderes do passado". No caos geral, poderosos impérios se formaram para logo de novo ruírem, emergiram momentaneamente heróis para serem de novo remetidos para a obscuridade por rivais ousados e mais poderosos. Foi uma revolução ao pé da qual a Revolução Francesa é uma brincadeira de crianças; uma luta universal face à qual as lutas dos Diádocos aparecem mesquinhas. Os princípios expulsaram-se uns aos outros, os heróis do pensamento derrubaram-se uns aos outros com uma pressa inaudita, e nos três anos entre 1842 e 1845 varreu-se mais do passado na Alemanha do que anteriormente em três séculos.

    Tudo isto teria ocorrido no pensamento puro.

    Trata-se, por certo, de um acontecimento interessante: do processo de putrescência do espírito absoluto. Depois de extinta a última centelha de vida, as várias partes constitutivas deste caput mortuum entraram em decomposição, estabeleceram novas combinações e formaram novas substâncias. Os industriais da filosofia, que até aí tinham vivido da exploração do espírito absoluto, lançaram-se agora sobre as novas combinações. Cada um procedeu, com o maior zelo possível, à venda ao desbarato do quinhão que lhe coubera. Isto não podia sair bem sem concorrência. Esta foi inicialmente conduzida de um modo bastante burguês e respeitável. Mais tarde, quando o mercado alemão estava saturado e a mercadoria, a despeito de todos os esforços, não encontrava acolhimento no mercado mundial, o negócio foi estragado à maneira habitual na Alemanha - pela produção em grande escala e fictícia, pela deterioração da qualidade, pela adulteração da matéria-prima, pela falsificação dos rótulos, por compras fictícias, por vigarices no saque de letras e por um sistema de crédito destituído de qualquer base real. A concorrência acabou numa luta encarniçada que agora nos é exaltada e apresentada como uma mudança de importância histórica, como geradora dos resultados e conquistas mais prodigiosos.

     Para apreciar correctamente esta charlatanice filosófica, que até no peito do cidadão alemão honesto desperta um grato sentimento nacional, para dar bem a ideia da mesquinhez, da tacanhez provinciana de todo este movimento jovem-hegeliano, nomeadamente do contraste tragicómico entre os verdadeiros feitos destes heróis e as ilusões sobre esses feitos, é necessário observar todo o espectáculo de um ponto de vista exterior à Alemanha.

    1. A ideologia em geral, nomeadamente a alemã

   A crítica alemã não abandonou, até aos seus esforços mais recentes, o terreno da filosofia. Longe de examinar as suas premissas filosóficas gerais, as suas questões saíram todas do terreno de um sistema filosófico determinado, o de Hegel. Não apenas nas suas respostas, mas já nas próprias questões estava uma mistificação. Esta dependência de Hegel é a razão pela qual nenhum destes críticos mais recentes tentou sequer uma crítica ampla do sistema de Hegel, por mais que cada um deles afirme estar para além de Hegel. A sua polémica contra Hegel, e entre si, reduz-se ao facto de cada um deles ter chamado a si uma faceta do sistema de Hegel e tê-la virado tanto contra todo o sistema como contra as facetas reclamadas pelos outros. A princípio chamavam a si categorias puras de Hegel, não falsificadas, como substância e consciência de si, mas posteriormente profanaram estas categorias com nomes mais mundanos, como espécie, o Único, o Homem, etc.

      Toda a crítica filosófica alemã de Strauss a Stirner se reduz à crítica de representações religiosas. Partiu-se da religião real e da autêntica teologia. O que são consciência religiosa e representação religiosa foi posteriormente definido de maneiras diversas. O progresso consistiu em subsumir [subsumieren] as representações metafísicas, políticas, jurídicas, morais e outras, pretensamente dominantes, também na esfera das representações religiosas ou teológicas; e, do mesmo modo, em explicar a consciência política, jurídica e moral como consciência religiosa ou teológica, e o homem político, jurídico e moral em última instância, "o Homem" — como religioso. Pressupunha-se o domínio da religião. Gradualmente, cada relação dominante foi explicada como uma relação da religião e transformada em culto: culto do direito, culto do Estado, etc. Por toda a parte se lidava apenas com dogmas e com a fé em dogmas. O mundo foi canonizado numa medida sempre crescente, até que por fim o venerável São Max o pôde declarar santificado en bloc, e deste modo despachá-lo de uma vez por todas.

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