1. A classe dominante e consciência dominante. Formação da concepção de Hegel do domínio do espírito na história

      As ideias da classe dominante são, em todas as épocas, as ideias dominantes, ou seja, a classe que é o poder material dominante da sociedade é, ao mesmo tempo, o seu poder espiritual dominante. A classe que tem à sua disposição os meios para a produção material dispõe assim, ao mesmo tempo, dos meios para a produção espiritual, pelo que lhe estão assim, ao mesmo tempo, submetidas em média as ideias daqueles a quem faltam os meios para a produção espiritual. As ideias dominantes não são mais do que a expressão ideal [ideell] das relações materiais dominantes, as relações materiais dominantes concebidas como ideias; portanto, das relações que precisamente tornam dominante uma classe, portanto as ideias do seu domínio. Os indivíduos que constituem a classe dominante também têm, entre outras coisas, consciência, e daí que pensem; na medida, portanto, em que dominam como classe e determinam todo o conteúdo de uma época histórica, é evidente que o fazem em toda a sua extensão, e portanto, entre outras coisas, dominam também como pensadores, como produtores de ideias, regulam a produção e a distribuição de ideias do seu tempo; que, portanto, as suas ideias são as ideias dominantes da época. Numa altura, por exemplo, e num país em que o poder real, a aristocracia e a burguesia lutam entre si pelo domínio, em que portanto o domínio está dividido, revela-se ideia dominante a doutrina da divisão dos poderes, que é agora declarada uma "lei eterna".

     A divisão do trabalho, que já atrás (p. [15-18]) encontrámos como uma das principais forças da história até aos nossos dias, manifesta-se agora também na classe dominante como divisão do trabalho espiritual e [31] material, pelo que no seio desta classe uma parte surge como os pensadores desta classe (os ideólogos conceptivos activos da mesma, os quais fazem da formação da ilusão desta classe sobre si própria a sua principal fonte de sustento), ao passo que os outros têm uma atitude mais passiva e receptiva em relação a estas ideias e ilusões, pois que na realidade são eles os membros activos desta classe e têm menos tempo para criar ilusões e ideias sobre si próprios. No seio desta classe pode esta cisão da mesma chegar a uma certa oposição e hostilidade entre ambas as partes, mas que por si própria desaparece em todas as colisões práticas em que a própria classe fica em perigo, desaparecendo então também a aparência de que as ideias dominantes não seriam as ideias da classe dominante e teriam um poder distinto do poder desta classe. A existência de ideias revolucionárias numa época determinada pressupõe já a existência de uma classe revolucionária, e já atrás ficou dito o que era necessário sobre estas premissas (p. [18-19, 22-23]).

      Ora, se na concepção do curso da história desligarmos as ideias da classe dominante da classe dominante, se lhes atribuirmos uma existência autónoma, se nos ficarmos por que numa época dominaram estas e aquelas ideias, sem nos preocuparmos com as condições da produção e com os produtores destas ideias, se, portanto, deixarmos de fora os indivíduos e as condições do mundo que estão na base das ideias, então poderemos dizer, por exemplo, que durante o tempo em que dominou a aristocracia dominaram os conceitos honra, lealdade, etc., durante o domínio da burguesia dominaram os conceitos liberdade, igualdade, etc. Em média, é isto que a própria classe dominante imagina. Esta concepção da história, que a todos os historiadores é comum, em especial a partir do século XVIII, há-de necessariamente dar com o [32] fenómeno de que dominam ideias cada vez mais abstractas, isto é ideias que assumem cada vez mais a forma da universalidade. É que cada nova classe que se coloca no lugar de outra que dominou antes dela, é obrigada, apenas para realizar o seu propósito, a apresentar o seu interesse como o interesse comunitário de todos os membros da sociedade, ou seja, na expressão ideal [ideell]: a dar às suas ideias a forma da universalidade, a apresentá-las como as únicas racionais e universalmente válidas. A classe revolucionante entra em cena desde o princípio, já que tem pela frente uma classe, não como classe, mas como representante de toda a sociedade, ela aparece como a massa inteira da sociedade face à única classe, a dominante. E consegue-o porque, a princípio, o seu interesse anda realmente ainda mais ligado ao interesse comunitário de todas a demais classes não dominantes, porque sob a pressão das condições até aí vigentes ele não pôde ainda desenvolver-se como interesse particular de uma classe particular. A sua vitória aproveita também, por isso, a muitos indivíduos das demais classes que não se tornam dominantes, mas apenas na medida em que permite a estes indivíduos subirem à classe dominante. Quando burguesia francesa derrubou o domínio da aristocracia, tornou desse modo possível a muitos proletários subirem acima do proletariado, mas apenas na medida em que se tornaram burgueses. Cada nova classe, por isso, instaura o seu domínio apenas sobre uma base mais ampla do que a da até aí dominante, pelo que, em contrapartida, mais tarde também o antagonismo da classe não dominante contra a agora dominante se desenvolve muito mais aguda e profundamente. Por ambas as razões é determinado o facto de que a luta a travar contra a nova classe dominante por seu turno visará uma negação mais radical, mais decidida, das condições sociais até aí vigentes do que fora possível a todas as classes que anteriormente procuraram dominar.

     Toda esta aparência de que o domínio de uma determinada classe seria apenas o domínio de certas ideias cessa, naturalmente, por si mesma logo que o domínio de classes em geral deixa de ser a forma da ordem social, logo que, portanto, deixa de ser necessário apresentar um interesse particular como geral ou "o geral" como dominante.

     Uma vez separadas as ideias dominantes dos indivíduos dominantes, e sobretudo das relações decorrentes de uma dada fase do modo de produção, e atingido assim o resultado de que na história dominam sempre as ideias, é muito fácil abstrair destas várias ideias "a ideia", a Ideia, etc., como o que domina na história, e entender assim todas as diferentes ideias e conceitos como "autodeterminações" do conceito que se desenvolve na história. E, então, também é natural que todas as relações dos homens possam ser derivadas do conceito de Homem, do Homem tal como representado, da essência do Homem, do Homem. Foi o que fez a filosofia especulativa. O próprio Hegel confessa, no fim da Filosofia da História, que "apenas considerou o curso do conceito" e que na história apresentou a "verdadeira teodiceia" (p. 446). Podemos agora voltar aos produtores do "conceito", aos teóricos, ideólogos e filósofos, e chegamos então a esta conclusão: os filósofos, os pensadores como tais, desde sempre dominaram na história — uma conclusão que, como vemos, já foi expressa por Hegel. Todo o truque de demonstrar na história a soberania do espírito (a hierarquia, em Stirner) reduz-se, portanto, aos seguintes três esforços.

      N.º 1. É preciso separar as ideias dos que dominam por razões empíricas, em condições empíricas e como indivíduos materiais, destes mesmos que dominam, e por esta via reconhecer o domínio das ideias ou ilusões na história.

     N.º 2. É preciso pôr uma ordem neste domínio das ideias, demonstrar uma conexão mística entre as ideias que sucessivamente dominam, o que se consegue pela via de considerá-las "autodeterminações do conceito" (e isto é possível pelo facto de estas ideias, graças à sua base empírica, estarem realmente em conexão entre si, e pelo facto de elas, entendidas como meras ideias, se tornarem autodistinções, diferenças feitas pelo pensamento).

      N.º 3. Para eliminar o aspecto místico deste "conceito que se autodetermina", transformam-no numa pessoa — "a Consciência de Si" —, ou, para parecerem verdadeiramente materialistas, numa série de pessoas que representam "o conceito" na história, nos "pensadores", nos "filósofos", nos ideólogos, que agora de novo são entendidos como os fabricantes da história, como o "Conselho dos Guardiães", como os dominantes Deste modo eliminaram da história todos os elementos materialistas, e puderam então dar rédea solta ao seu corcel especulativo.

     Este método histórico que dominou na Alemanha, e especialmente a razão por que dominou, têm de ser explicados a partir da conexão com a ilusão dos ideólogos em geral, por exemplo, as ilusões dos juristas, políticos (entre os quais, também, os estadistas práticos), a partir das divagações dogmáticas e distorções destes sujeitos, ilusão aquela que muito simplesmente se explica pela sua posição prática na vida, pela sua actividade e pela divisão do trabalho.

    Enquanto na vida comum cada shopkeeper sabe muito bem distinguir entre aquilo que alguém pretende ser e aquilo que é realmente, a verdade é que a nossa historiografia ainda não atingiu este reconhecimento trivial. Ela acredita que todas as épocas são, literalmente, aquilo que dizem e imaginam ser.

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