1. Condição da libertação real do homem
Não nos vamos, naturalmente, dar ao trabalho de esclarecer os nossos sábios filósofos sobre o facto de que a "libertação" do "Homem" não avançou um único passo por terem resolvido a filosofia, a teologia, a substância e todo o lixo na "Consciência de Si", por terem libertado o "Homem" do domínio destas frases sob as quais ele nunca foi escravo; de que não é possível conseguir uma libertação real a não ser no mundo real e com meios reais, de que não se pode abolir [aufheben] a escravatura sem a máquina a vapor e a mule-jenny, nem a servidão sem uma agricultura aperfeiçoada, de que de modo nenhum se pode libertar os homens enquanto estes não estiverem em condições de adquirir comida e bebida, habitação e vestuário na qualidade e na quantidade perfeitas. A "libertação" é um acto histórico, não um acto de pensamento, e é efectuada por relações históricas, pelo nível da indústria, do comércio, da agricultura, do intercâmbio]... então, ulteriormente, consoante as suas diferentes etapas de desenvolvimento, o absurdo da substância, do sujeito, da consciência de si e da critica pura, tal como o absurdo religioso e teológico, e depois eliminam-no de novo quando estão suficientemente desenvolvido. Como é natural, num país como a Alemanha, onde se processa apenas um desenvolvimento histórico miserável, estes desenvolvimentos do pensamento, estas trivialidades transfiguradas e ineficazes, encobrem a falta do desenvolvimento histórico, fixam-se e têm de ser combatidas. Mas esta é uma luta de importância local.
2. Crítica do materialismo contemplativo e inconsequente de Feuerbach
Na realidade, e para o materialista prático, isto é, para o comunista, trata-se de revolucionar o mundo existente, de atacar e transformar na prática as coisas que encontra no mundo. Se em Feuerbach, por vezes, se encontram tais ideias, a verdade é que estas nunca vão além de conjecturas isoladas e têm uma influência demasiado reduzida no seu modo geral de ver para que aqui possam ser consideradas algo mais do que embriões capazes de se desenvolverem. A "concepção" de Feuerbach do mundo sensível limita-se, por um lado, à mera contemplação deste, e, por outro, à mera sensação; ele diz “o Homem" em vez de o(s) “homens históricos reais". “O Homem" é, realiter “o Alemão". No primeiro caso, na contemplação do mundo sensível, esbarra necessariamente em coisas que contradizem a sua consciência e o seu sentimento, que perturbam a harmonia, por ele pressuposta, de todas as partes do mundo sensível, e nomeadamente do homem com a natureza. Para eliminar tais coisas, tem de procurar refúgio numa dupla contemplação, entre uma profana, que só avista o “trivialmente óbvio", e uma superior, filosófica, que avista a “verdadeira essência" das coisas. Ele não vê que o mundo sensível que o rodeia não é uma coisa dada directamente da eternidade, sempre igual a si mesma, mas antes o produto da indústria e do estado em que se encontra a sociedade, e precisamente no sentido de que ele é um produto histórico, o resultado da actividade de toda uma série de gerações, cada uma das quais aos ombros da anterior e desenvolvendo a sua indústria e o seu intercâmbio e modificando a sua ordem social de acordo com necessidades já diferentes. Mesmo os objectos da mais simples “certeza sensível" são-lhe apenas dados por meio do desenvolvimento social, da indústria e do intercâmbio comercial. A cerejeira, como é sabido, e bem assim quase todas as árvores de fruto, só há poucos séculos foi transplantada para a nossa zona por meio do comércio, e por isso só [9] por meio desta acção de uma determinada sociedade num determinado tempo foi dada à “certeza sensível" de Feuerbach.
De resto, nesta concepção das coisas tal como elas realmente são e aconteceram, todos os problemas filosóficos profundos se resolvem, como mais adiante se revelará ainda com maior nitidez, muito simplesmente num facto empírico. Por exemplo, a questão importante da relação do homem com a natureza (ou, como Bruno diz (p. 110), as “antíteses na natureza e na história", como se estas fossem duas “coisas" separadas uma da outra, como se o homem não tivesse sempre diante de si uma natureza histórica e uma história natural), da qual saíram todas as “obras imperscrutavelmente elevadas" sobre “substância" e “consciência de si", desfaz-se por si própria com a compreensão de que a celebrada “unidade do homem com a natureza" desde sempre existiu na indústria e existiu em todas as épocas de formas diferentes, segundo o menor ou maior desenvolvimento da indústria, tal como a “luta" do homem com a natureza, até ao desenvolvimento das suas forças produtivas numa base correspondente. A indústria e o comércio, a produção e a troca das necessidades da vida por um lado condicionam — e por outro lado são condicionados, no modo como se processam, por — a distribuição, a articulação das diferentes classes sociais; e assim acontece que Feuerbach, em Manchester, por exemplo, só vê fábricas e máquinas onde há um século se viam apenas rodas de fiar e teares, ou na Campagna di Roma só descobre pastagens e pântanos onde no tempo de Augusto nada teria encontrado a não ser vinhedos e vilas de capitalistas romanos. Feuerbach fala nomeadamente da observação da ciência da natureza, menciona segredos que apenas se revelam aos olhos do físico e do químico; mas, sem a indústria e o comércio, onde estaria a ciência da natureza? Mesmo esta ciência “pura" da natureza só alcança o seu objectivo, bem como o seu material, por meio do comércio e da indústria, por meio da actividade sensível dos homens. E de tal modo esta actividade, este trabalho e esta criação sensíveis contínuos e esta produção são a base de todo o mundo sensível como ele agora existe, que, se fossem interrompidos ao menos um ano, Feuerbach não só encontraria uma enorme mudança no mundo natural como muito em breve daria pela falta de todo o mundo dos homens e da sua própria faculdade de observação — mais, da sua própria existência. É certo que, no meio de tudo isto, se mantém a prioridade da natureza exterior, e é certo que tudo isto não tem qualquer aplicação aos homens originais produzidos por generatio aequivoca; mas esta diferenciação só tem sentido na medida em que se considera o homem como sendo diferente da natureza. De resto, esta natureza que precedeu a história humana não é, de modo nenhum, a natureza em que Feuerbach vive, é a natureza que hoje em dia, à excepção talvez de uma ou outra ilha de coral australiana de origem recente, já em parte nenhuma existe, e que portanto também não existe para Feuerbach.
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A ideologia alemã
Non-FictionA Ideologia Alemã. Crítica da Novíssima Filosofia Alemã na Pessoa dos seus Representantes Feuerbach, B. Bauer e Stirner e do Socialismo Alemão na Pessoa dos seus Diversos Profetas é uma obra conjunta de K. Marx e F. Engels, na qual trabalharam em Br...