Prólogo

15 1 0
                                    

Ao segurar as malas, pensava que seria a última vez em que isso se repetiria

Ops! Esta imagem não segue nossas diretrizes de conteúdo. Para continuar a publicação, tente removê-la ou carregar outra.


Ao segurar as malas, pensava que seria a última vez em que isso se repetiria. Yeona ergueu o olhar, os olhos castanhos fitando a casa com o cercado branco, o nervosismo subindo pela garganta quando pensava que seria apenas por um tempo, os lábios rosados se curvaram em um sorriso breve, acompanhando quando a porta da frente se abriu. Encostado no carro, o homem de terno afastou-se, os passos calmos até perto dela, quando a garota ainda apertava a mala branca. Parecia uma boneca de porcelana, mesmo naquela época, sendo uma criança que ficava na ponta dos pés a espiar o cercado branco, o homem a encarou como um pequeno ser imprevisível. Ela parou de ficar na ponta dos pés, endireitando a postura ao olhar o mais velho, não foi uma decisão em que a opinião dela contasse. De alguma maneira, ainda sorria, mesmo sabendo o que significava.

— É por um tempo. — Ele dissera — Comporte-se, são pessoas gentis e sabem o que fazem.

Yeona tinha apenas treze anos, mas compreendia. Aquele homem não era de sua família, e naquele instante, era uma palavra pronunciada com cuidado. Memorizou bem as letras, os sons, teve algum tempo no carro a aprender um pouco mais sobre o idioma, embora não fosse uma garota coreana vinda do país de origem, e acreditava que talvez fosse inspirador se fosse uma garota que fugiu do Norte e chegou na China, erguendo os braços em socorro. Foi naquela manhã quando pegou pela primeira vez um celular, viu a face da mulher que escapou do Norte. Mas não entendia muito o que era aquele mundo, não entendia nada senão algumas palavras em inglês e pior ainda, sua perspectiva para tudo era uma pintura surrealista. Confusa, tola e inocente. Naquela idade crianças já liam revistas sobre o relacionamento de celebridades ou tentavam imitar penteados de modelos. Antes daquele dia, Yeona vivia em um quarto vazio onde a comida passava pela porta do cachorro. Não compreendeu quando arrombaram a porta e homens de farda pareciam em choque, apenas soube dizer “Obrigada”. Era a palavra que mais se recordava, desde suas primeiras lembranças.

“Obrigada”. “Sim, mamãe”. “Desculpe”.

O homem não era um parente, e aquela pequena mala era tudo o que ela tinha. “É seguro aqui” diziam, como se estivessem a deixando em um sítio mágico com animais adoráveis, quando a realidade era que tudo o que vivenciou era o pior dos pesadelos, deixada na escuridão, ensinada que tudo era normal. Então, novamente era deixada em outra casa. Em um novo mundo desconhecido e assustador. Encolheu os ombros ao ver o casal, a mulher com o coque desleixado e ainda usando luvas e o avental rosado, era bonito. A garota fitou o marido dela, um homem gentil e que sorria como se estivesse resgatando um filhote abandonado. Virou o rosto, a rua era bem iluminada, casas que mais pareciam de boneca, com seus cercados brancos e os cachorros descansando no gramado. Yeona não teve um cachorro, muito menos uma janela. Ao final na rua havia um grupo de garotos, um deles empurrava a bicicleta com calma, erguendo o olhar, a encarando. Não esperava naquele dia ver algo em que teria que dividir presentes, comida, privilégios. Os olhos azuis se voltaram para os pais, a forma como a guiavam para dentro, e ela se recusava a largar a mala branca.

O vestido branco de Yeona mostrou nas costas alguns gotas e sangue manchando o tecido, não combinava com o laço que prendia os cabelos, muito menos pela forma educada que repetia “Obrigada”. Repetindo tanto que pareceu não fazer sentido, e dentro da casa, encarando a sala que para seu olhar infantil era imensa, Yeona ainda estranhava um mundo de tantas cores.

— Seu nome é muito lindo. — A mulher dizia, o tom pausado, inclinando a cabeça para o lado. A criança ainda encarava a sala, inexpressiva. — Ficará no quarto de Sarah, ela é a nossa filha. Está na Suécia.

Ambos se olharam, sabiam o que estavam fazendo. O homem se aproximou, apontando para a porta aperta ao final do corredor, com o mesmo sorriso estupidamente gentil.

— Entende o que estamos falando? Duas vezes. Você e eu, vamos conversar ali, duas vezes por semana. — Ele mostrava os dois dedos, indicando o número. Yeona o olhou, assentindo positivamente. Seria por um tempo, era só o que sabia. Acreditava que em breve veriam que era um mau entendido, e voltaria para casa. Não entendia que ambos a olhavam como duas coisas diferentes. Não era uma filha adotiva. Era simplesmente alguém que precisava de um lugar seguro enquanto a mãe era investigada, e se ela falasse, poderia esclarecer o que andava acontecendo e por que quando a encontraram, aquela criança parecia alheia a tudo. Também era um trabalho em progresso. Afinal, ambos eram especialistas em crianças traumatizadas. Esse rótulo não aliviava as coisas, muito menos quando a porta voltou a se abrir e a mulher reclamava sobre a sujeita que Ethan fazia e que não comprou os tênis novos para que ele os estragasse em uma trilha.

O garoto passou por eles sem se importar, subindo as escadas, parando no topo dos degraus, olhando para a sala dali como se tivesse um ar superior ao encarar o novo item de estudo do pai.

Ethan. Yeona aprendeu rápido esse nome. Ele a encarou com curiosidade, não com um ar maléfico. E por um tempo, sentou-se nas escadas, observando intrigado como apertava aquela mala.

O jantar havia uma variedade de pratos que ela nunca tinha visto, mas a comida não parecia durar dentro do estômago, assim como o sono não era existente. O quarto de Sarah era rosa, cheio de pôsteres de cantores quase sem camisa, a estante cheia de bonecas e a cama foi a primeira coisa que Yeona olhou como algo de outro mundo, nunca teve uma. Ethan observou com cuidado na fresta da porta, as míseras manchas de sangue nas costas eram como um convite para teorias, embora a maior delas surgisse ao ver que aquela garota ao colocar a mala sobre a cama, a abriu e lá não existia nada além de um vestido encardido, feito de um tecido de péssima qualidade, e uma caixinha de música.

Ele odiou aquela música.

Ela sabia que ele estava olhando.

All the little secretsOnde histórias criam vida. Descubra agora