Definhamento

109 4 0
                                    

POV Emma

Archie Hopper foi o primeiro a morrer.

Pelo menos o primeiro da minha turma, no quinto ano. Àquela altura, milhares, talvez até centenas de milhares de crianças já deviam ter partido. As pessoas demoraram a juntar as peças - ou pelo menos, descobriram uma forma de esconder a verdade de nós por muito tempo desde que as crianças começaram a morrer.

Quando as mortes enfim vieram à tona, minha escola proibiu professores e funcionários de conversarem com os alunos sobre o que, na época, era chamado de doença de Everhart, em homenagem a Maycon Everhart, a primeira vítima. Pouco depois, alguém decidiu dar um nome científico: Neurodegeneração idiopática aguda adolescente - ou simplesmente N.I.A.A -, foi quando deixou de ser apenas a doença de Maycon e virou a de todos nós.

Os adultos que eu conhecia escondiam o que sabiam sob um véu de sorrisos e abraços falsos. Eu ainda estava presa no meu próprio mundo de sol, pôneis e carrinhos de corrida. Quando me lembro desses tempos, não consigo acreditar em como era ingênua, em quantas pistas deixei passar. Mesmo as coisas grandes; por exemplo, quando meu pai, policial, começou a passar mais tempo no trabalho, mal suportando olhar na minha cara quando finalmente chegava em casa. Além disso, minha mãe me fazia passar por uma rigorosa dieta de vitaminas e se recusava a me deixar sozinha, mesmo que por alguns minutos (Não sabia exatamente se era por minha condição ou pelo vírus, na época).

Meus pais eram filhos únicos, eu não tinha nenhum primo morto para despertar minha atenção. Nenhuma notícia assustadora abalava meu mundinho. E isso era suficiente para me manter muito mais preocupada com a arrumação dos bichinhos de pelúcia na cama do que com o risco de morrer antes de completar dez anos.

Eu também estava totalmente despreparada para o que aconteceu no dia 11 de maio.

Tinha chovido na noite anterior, então meus pais me mandaram para a escola com minhas galochas e jaqueta vermelha, mesmo que a última fosse grande para mim. Na aula, falamos sobre dinossauros e praticamos a escrita cursiva até a hora do almoço, quando a senhora Porter nos dispensou com aquela expressão de alívio habitual.

Eu ainda me lembro muito bem de cada detalhe desse almoço. Não por que estava sentada de frente para Archie, mas porque ele foi o primeiro, e não era para isso ter acontecido. Ele morreu de repente, e só compreendemos tarde demais.

Archie estava em um debate acalorado sobre uma possível mosca presa na sua gelatina, mas eu não prestava muita atenção, toda ela estava focalizada em uma menina de longos cabelos negros e olhos castanhos, que encantavam a minha visão. No entanto, a massa laranja começou a tremer, quase transbordando enquanto o ruivo sacudia e apertava o copo de plástico. Claro que, naquele momento, todos queriam opinar, debater se aquilo era mesmo uma mosca ou só um confeito que Archie tinha enfiado lá dentro de propósito. Até eu quis me meter.

"Não estou mentindo - Argumentou ele. - Eu só..."

E parou no meio da frase, deixando o copo cair no chão. Estava com a boca aberta, os olhos vidrados em algum ponto invisível. A testa franzida em uma expressão confusa, quase como se estivesse ouvindo uma explicação muito, muito complicada.

Eu me lembro de ter perguntado:

"Archie? Tudo bem?"

As orbes dele se reviraram, deixando a parte branca exposta, um segundo antes de se fecharem.

Ficamos todos paralisados, mas acho que tivemos a mesmíssima suspeita: Archie desmaiou. Uma ou duas semanas antes, Drake Preston tinha desmaiado no parquinho - segundo a senhorita Porter, era falta de açúcar no sangue, ou qualquer outra desculpa.

Uma inspetora correu até a mesa. Era uma das quatro senhoras com viseiras brancas e apitos que se revezavam para supervisionar o almoço e o recreio durante a semana. Não sei se a mulher tinha experiência com primeiros socorros, provavelmente só tinha uma vaga noção de como fazer massagem cardíaca, mas mesmo assim ficou pressionando o peito inerte de Archie no chão. 

Olhamos, perplexos, a cena: Ela encostava o rosto na camisa roxa de Archie, tentando ouvir os batimentos cardíacos. Não sei o que passou pela cabeça dela, mas a mulher começou a gritar. De repente, nos vimos cercados de viseiras brancas e rostos curiosos. Só quando Kennya Cho cutucou com o pé a mão flácida de Archie que compreendemos: Ele estava morto.

As outras crianças começaram a gritar. Luke e Teresa, ali perto, choraram tanto que perderam o fôlego. Foi uma correria para fora do refeitório.

Eu só fiquei ali, parada, cercada por bandejas de almoço caídas no chão, encarando o copo de gelatina enquanto entrava em pânico, o terror congelando meus braços e pernas até parecer que nunca mais conseguiria me mexer. Se Regina, a garota em que prestei atenção anteriormente, não houvesse segurado minha mão e me tirado dali, não sei por quanto tempo eu teria ficado sentada.

"Archie  morreu - Eu pensava. - Archie morreu? Archie morreu!"

E só piorou. No mês seguinte, depois que passaram as primeiras ondas de mortes, metade da minha turma já tinha morrido.

Na semana do pronunciamento do presidente, vovó ligou e me explicou tudo que estava acontecendo do jeito dela, bem direta. Muitas crianças estavam morrendo, todas mais ou menos da minha idade, mas eu não precisava ficar com medo porque os médicos estavam cuidando da situação e essas coisas não aconteciam na nossa família.

Tudo foi de mal a pior muito rápido. Um dia depois de enterrarem três das quatro crianças do meu bairro, o presidente fez a transmissão do pronunciamento ao vivo. Meus pais assistiram pelo computador do escritório, e eu escutei atrás da porta.

Queria ter visto a cara do presidente durante o discurso. Acho que ele sabia - não tinha como não saber - que essa ameaça, essa mancha no nosso glorioso futuro, nada tinha a ver com as crianças mortas. Aquelas crianças estavam enterradas ou tinham virado cinzas, e tudo o que podiam fazer era assombrar a memória dos que as amavam. Elas haviam partido. Para sempre.

Mas o que os adultos estavam fazendo. Aquilo era medo. Não pelas crianças que corriam risco de vida, ou pelo vazio que as muitas vítimas já deixavam.

Era medo de nós... Os que sobreviveram.






Continua...

Mentes Sombrias - Swanqueen.Onde histórias criam vida. Descubra agora