- "Luiz Otávio diz" nada! - vociferou a moça enquanto apontava para o papel diversas vezes - você só diz...- Nunca foi minha intenção assustar você - o outro interrompeu inexpressivamente tentando se colocar no papel.
Se fosse para me convencer, pensou Verônica, e não à personagem, ele estaria perdido.
Continuaram a passar o roteiro, uma leitura criativa, como diria a moça. Estava ensaiando para uma peça e teria um teste logo mais naquela mesma tarde. Sua agenda estava cheia ultimamente, o que fazia com que ela trocasse seus horários, ou dividisse o tempo das refeições e outros eventos importantes com a leitura de seus hipotéticos futuros trabalhos. Havia todo um horizonte de possibilidades que ela ansiava animada.
As horas passavam apressadas, as linhas se multiplicam e as falas enchiam a boca dos dois. Ricardo ajudava porque primeiro: não teria como recusar um pedido de Verônica. Segundo: pura curiosidade.
O drama da noiva traída de Luís Otávio não era algo que agradava o rapaz pessoalmente, mas, agora que sabia que a história e o problema não eram com ele, poderia aproveitar ainda mais as caras e bocas da amiga.
Após cerca de uma hora de conversa roteirizada e um não almoço, Verônica decidiu que era hora de partir para seu teste. Iria caminhando. Devagarinho. Para não desalinhar os cabelos.
- Você sabe que há uma técnica interessantíssima para atestar se um ator está ou não compreendendo seu personagem? - perguntou a moça.
- Não. - Ricardo respondeu distraído, já que seu foco estava numa casquinha de sorvete que Verônica nem havia percebido que ele comprara.
- É o seguinte - começou animada - você vai usar um procedimento de sinestesia, de mistura de sentidos. Você vai falar uma palavra, ou duas, para representar um ambiente, um cheiro, um sabor, algo importante para uma cena. E eu vou fazer uma expressão que eu acho apropriada para o momento de acordo com a construção da minha personagem.
- Parece complicado fazer isso em movimento - disse enquanto tentava não deixar o sorvete escorrer e consequentemente sujar sua camisa social branca.
- Você vai se sair bem - retrucou dando um tapinha no ombro do rapaz.
Ele pareceu pensar por um ou dois segundos antes de soltar:
- Graxa de sapatos.
Verônica fez uma careta, as extremidades de seus lábios curvaram para baixo.
- Arroz no chão de igreja.
A moça olhou para o chão, fingindo que pegava um grão de arroz e o levava a boca. Foi a vez do outro fazer uma careta, o que fez com que a outra parasse o movimento. Balançando a cabeça ela indicou: não, não iria comer o arroz imaginário.
- Final de faz de conta.
Verônica abriu um sorriso. Fingiu abrir um livro. Fez cara de tédio e o fechou quase que imediatamente.
- Eu só não entendi a parte da mímica - Ricardo interrompeu o exercício.
- Ah. É importante. Não é mímica. É o corporal. São as expressões. Um rosto expressivo é de suma importância para o teatro. Pro cinema também. E os gestos complementam tudo na tela grande. É sobre vender a emoção do seu rosto.
- Está certo. Vamos continuar: Padaria fechada.
Verônica começou a chorar copiosamente. O outro mal podia acreditar: aquelas lágrimas cheias, escorrendo como um rio, brilhando com o reflexo do sol. Todos poderiam ver. De novo não!
- Verônica, não. As pessoas vão tornar a olhar...
Ela só parou porque percebeu que o teatro estava logo adiante. Secou as lágrimas e se recompôs em segundos. Ricardo lhe daria um Oscar no mesmo instante se possível.
O interior do teatro era gelado. Tinha cheiro perfume barato e sonhos despedaçados. Os dois esperaram uns bons minutos até adentrarem o local dos testes. Ricardo sentou na platéia, numa grande distância dos avaliadores. Um único holofote aguardava Verônica.
- Verônica Muniz?
- Olá - saldou com um sorriso largo.
Os momentos seguintes passaram como flashes na cabeça do rapaz. Uma sucessão de ordens foram jogadas no rosto de Verônica, verdadeiras provações: Chore! Dê risada! Olhe com desdém! Agora suplique! Finja que ouviu uma piada ruim. Agora conte uma piada ruim!
E Verônica passava por todos os testes, se recuperando de cada expressão em instantes, assim como fizera antes, e formando novas emoções com a beleza de uma pintura renascentista.
- É isso! - o avaliador que clamava as demandas exclamou - Acho que estamos diante de uma estrela!
"Corta!" O diretor exclamou. As luzes se ascenderam e os avaliadores se levantaram sorrindo. "Ricardo" levantou também caminhando para fora dos limites do set-teatro.
"Rebeca, você está ótima como Verônica, esse é o caminho." Ela esboçou um leve sorriso. "Samuel, podemos revisar uma coisa ou duas do seu Ricardo." O outro permaneceu sério.
"Terminamos por hoje, amanhã continuamos na cena do jantar!" Ele completou.
Rebeca voltou para casa cansada pensando: quantos diálogos! Coitado do
rapaz que vai fazer os letreiros explicativos!
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Os olhos de Verônica
Short StorySeguindo a proposta "Copa das Décadas" essa história é ambientada em 1926 e acompanha o cotidiano da jovem artista Verônica. Terceiro lugar na Copa dos Contos 2023 🥉