O último ato

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Rebeca abriu os olhos com dificuldade. Uma forte luz solar refletiu neles gradativamente, até que eles começaram a doer. Vacilaram, ela queria fechá-los de novo, mas a curiosidade de Rebeca não permitia, pois notará que estava agora em um quarto muitíssimo branco, sob uma coisa muitíssimo estranha e hospitalar.

Até onde vai a cabeça das pessoas?, se perguntou. As pessoas normalmente não pensam nessas coisas. As pessoas normalmente não pensam nas outras pessoas. É sempre como a Verônica age e reage, não como a Rebeca se sente. Nunca sobre o que a Rebeca vê.

Fazia tanto, que nem tivera tempo o suficiente para sentir que estava mal. Se sentia miserável. Agora, pensando em retrospecto, se tivesse aguentado só mais alguns minutinhos em cena, teria sido o bastante. Eles provavelmente haviam de substituí-la na gravação final de um jeito que não desse para perceber se era ela ou não. Agora não importava, não era um rosto importante o suficiente para ser exigida, desejada. Era uma atriz qualquer. Alguns rostos são mais importantes do que os outros e ela achava tão engraçado como as pessoas se importavam com certas coisas e outras não... Queria ao menos ter se despedido de Verônica, mesmo com todas as suas falhas e excessos, gostava dela. Às vezes era difícil de se despir de um personagem desses que grupo. Estava com Verônica há uns dois meses e às vezes parecia que sempre fora Verônica, que nunca fora Rebeca. Cansaço...

Não tardou para que a enfermeira entrasse no quarto e checasse sua temperatura. Aquela não parecia ser a primeira, nem a segunda vez. Quanto tempo será que havia dormido? Um dia? Uma semana? Teria a sorte de ter dormido um mês? Queria na verdade ter dormido por um ano inteiro para finalmente ver o cinema com palavras em todo o seu esplendor e encanto.

Observando melhor, a enfermeira bem que parecia estar usando um uniforme diferente daquele que Rebeca lembrava. Alguns detalhes na manga estavam ligeiramente mudados... Mais moderno... Mas ele não parecia particularmente novo. Talvez ela tivesse mesmo dormido por um tempo. Talvez fosse 1927 afinal.

Rebeca viu o estetoscópio da enfermeira se aproximando, ou aquilo que parecia ser um estetoscópio. Talvez fosse um instrumento medicinal futurista, muito mais avançado do que ele poderia prever. E se dormira tanto que perdera mais de uma década? Será que um estetoscópio de 1836 seria esteticamente parecido com um de 1926, mas, funcionalmente revolucionário? O quanto as coisas mudavam em uma década? Seria capaz de ter dormido por dez anos? Mas então a enfermeira posicionou o estetoscópio da maneira habitual e seguiu com os procedimentos que Rebeca julgava ser os padrões quando alguém acordava depois de dormir por não muito tempo. Será que os procedimentos seriam os mesmos em 1927. Gostava mais de 1927. Queria fugir para lá.

Encarou os olhos da mulher, escuros, impossíveis. Pensou em perguntar o ano. Perguntar o dia poderia ser uma ideia melhor, mas ela poderia responder algo genérico como "segunda-feira" e ela continuaria perdida para sempre. Qual seria a pior resposta que poderia ouvir? Pensou em falar. Hesitou, mas por fim, algo saiu:

- Em que ano nós estamos? - balbuciou baixinho, visivelmente fraca.

A mulher balançou a cabeça negativamente repetidas, olhou para Rebeca com um algo que não parecia ser empatia, nem compaixão, mas o avesso diaso. Até que ela disse por fim:

- Tadinha, não está bem como eu pensava. Não encha a sua cabeça com essas coisas, vai ficar tudo bem.

O que aquilo queria dizer? Será que as pessoas falavam em código no futuro. Rebeca lembrou de uma conversa entre o diretor e um dos letristas: metáfora é coisa para escritor, vejam como o texto do nosso roteiro é claro, simples, o texto do letreiro deve ser mais ainda. As letras precisam refletir tudo isso: simplicidade! Compreensão instantânea!

Se estivesse em um filme, estaria provavelmente em uma comédia. Conseguia imaginar claramente sua personagem tentando se levantar apenas para cair imediatamente em seu leito. Ela levaria a mão à cabeça, fazendo uma careta bem exagerada para ilustrar sua enxaqueca, e despreocupar o telespectador em tensão, e um grande letreiro com uma fonte simples e instantaneamente compreensível diria: "Ouch" ou qualquer outra onomatopeia do tipo. Em seguida, ela se prenderia a algum detalhe do ambiente, algo à primeira vista completamente ordinário, mas que ali, no ambiente hospitalar, pareceria totalmente incomum: que janela estranha! Ela pensaria. Seria uma janela futurista? Quanto tempo dormi? Sua personagem perguntaria e ela passaria a analisar cada pequeno detalhe daquele cômodo, procurando os mínimos detalhes do tempo presente.

Olharia as revistas e jornais, perto de seu leito e se perguntaria quanto tempo os hospitais e consultórios médicos demoram para se preocupar se suas revistas estão velhas demais. E se eles alguma vez atualizavam suas revistas e jornais. Ou talvez, tivera deixa os jornais e revistas lá um professor de universidade que fazia uma pesquisa sobre os hábitos do passado da sociedade brasileira e ela estava na verdade em 1995. Quem sabe. Deveria escrever essa história sobre o hospital de 1995.

Outra pessoa abrira a porta do quarto. Outra mulher de branco. O uniforme, também diferente da primeira, ela deveria ser a médica encarregada do caso de Rebeca. A mulher pegou uma prancheta e começou a analisar as anotações anexadas à ela. Olhou para a moça por de cima dos óculos de armação marrom e depois voltou para as anotações. Olhou para Rebeca como quem diz: eu não tenho culpa dessas suas manias de atriz, menina. Vai respirar, se quiser, te passo um remédio que espanta personagem grudento em menos de três dias, é um processo tão científico quanto dramaturgico, você vai ficar tinindo. Mas a mulher não disse nada. Então Rebeca deveria justamente ser a pessoa falaria primeiro.

- Desculpa o incomodo - a mulher voltou a atenção para ela nesse momento - eu sei que é bobo - dessa vez ela escolheu bem as palavras - quanto tempo eu dormi?

A cara ranzinza da mulher se desfez num segundo. Primeiro ela sorriu, depois riu levemente, ajustou os óculos e finalmente revelou:

- Menos de 24 horas menina. Não precisa usar esse tom de preocupada! A maioria das pessoas que para aqui nessa ala perde a noção de tempo! Nós estamos do lado dos casos não tão graves do hospital. Sua pressão caiu! Precisa tomar cuidado. Agora está tudo sob controle, aos poucos você vai começar a se sentir melhor.

- Que dia é hoje?

- 27 - a mulher respondeu. Rebecca suspirou - É esse dia mesmo que você imaginava ser? - tornou a perguntar.

- Aham - resmundou desanimada.

- Ótimo! Tem uma amiga sua que esperou a manhã inteira para a hora das visitas. Posso deixar ela entrar agora? - Rebeca concordou, só havia uma pessoa que a procuraria naquele momento:

- Oi, Vanessa - sua voz ainda soava baixa, limpa de qualquer vaidade, de qualquer gana, até o momento, lutava com unhas e dentes para ser Verônica. Agora só estava sendo.

- Menina! Que susto! Você deixou uma impressão e tanto no estúdio. - Vanessa, que trajava um vestido verde escuro, posicionava um buquê de rosas brancas ao lado da cama de Rebeca. Era possível ver um cartão que dizia: fique bem logo.

- E como estão as coisas por lá?

- Seu chefe mandou dizer que terminaram a cena por você - claro -, mas que ninguém vai perceber - esperado - e que não tinha como parar as gravações por mais um dia. Eles precisavam terminar.

- Claro. Claro - Rebeca não faria cerimônia, sabia que era o jeito de terminar tudo.

Se fosse com Verônica, ah! Seria muito diferente! Ela chegaria no outro dia com os cachos louros balançando cheios de orgulho, e exigindo, de maneira mais angelical e ríspida possível, em toda a sua contradição em forma de mulher que, não! Não poderiam aceitar aquela cena no filme! Ela entregaria algo maior, melhor! Compensaria o atraso, encheria o estúdio de lágrimas, faria valer a pena! Rebeca no entanto, se limitada a dizer:

- Acontece, claro que a minha cena final seria muito melhor...

- Ah! - Vanessa gritou, para logo em seguida cubrir a boca com ambas as mãos, como se estivesse descobrindo naquele momento que estava em um hospital - Esse é o espírito! - disse pausadamente.

Rebeca abriu um sorriso. É. Tinha concluído o trabalho, de uma maneira esquisita, mas tinha concluído. Esticou o braço até seu buquê de flores a fim de pegar o cartão. Muitos colegas de trabalho pareciam ter assinado, figurantes, maquiadores, câmeras, até o diretor. Todo mundo, exceto seu par romântico. Era mesmo um paspalho aquele Luiz Otávio- Ricardo- Samuel. Parecia que ontem mesmo, ela, Verônica-Rebeca estava num restaurante, lotado de música e vida, estava recitando uma peça-filme, que jamais seria ouvida. Seria lida. Seria lida no seu filme. Mesmo quando não fosse ela em cena, seria lida, e seu nome passaria numa tela, mesmo que por letras minúsculas. Poderia ouvir o diretor dizer: esse é o seu castigo, pedi para o letrista diminuir seu nome, você fez 98% das suas cenas afinal, vai ficar de castigo.

- O que você vai fazer agora? - a amiga perguntava genuinamente animada.

- Eu? - Rebeca riu - Vou esperar 1927. Parar um pouco até tudo voltar aos eixos. Acho que o cinema também precisa fazer uma pausa. Vou esperar para ouvir o que ele tem para nos dizer.

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