Parte II - Rédeas e luzes

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As tentativas de colocar o cavalo para correr eram inúteis. O animal apenas relinchava estático enquanto as dez silhuetas se aproximavam vagarosamente, chegando mais e mais perto. Luís sabia que um cavalo amedrontado normalmente deveria correr. Pelas trocas de olhares transtornados, percebeu que Sofia também viu algo. As silhuetas não parecia nem um pouco um grupo de ladrões. Eram disformes e se misturavam à escuridão como fumaça.

Dois dos homens de sombras pisaram na área alcançada pela luz do lampião, há poucos metros do cavalo. Esse par era menor que os outros dez, dificultando vê-los no escuro. "Crianças?", pensou Luís. A chama do lampião se apagou repentinamente, agravando o breu ao redor dqueles seres. Rezando ofegantes, Luís e Sofia se arrastaram de costas com os pés e mãos enquanto seis das criaturas subiam vagarosamente na carroça. Luís sentiu algo envolver sua perna e ouviu sussurros falados em línguas desconhecidas. Ele identificou apenas uma palavra, dita num português com um sotaque estranho, porém familiar: "Devolva!"

A carroça sacudiu novamente, mas se movendo com velocidade. O barulho dos cascos indicava que o cavalo finalmente decidiu fugir. Pelas tênues luzes distantes dos postes e da Lua, Luís viu três seres que se penduravam na carroça caírem, e já não sabia distinguir se eram sombras ou corpos físicos. Uma delas continuou na carroça e bloqueou a tênue visão que Luís tinha de Sofia. Um barulho de madeira se arrastando soou junto à ordem: "Devolva!"

- As caixas - disse Luís movendo sua mão para a direção do som, fechando a tampa da caixa violentamente - Feche todas!

Sofia atendeu seu pedido com dificuldade, disputando as caixas com os seres na escuridão guiada pelo tato, enquanto Luís voltava para frente a fim de retomar o controle do cavalo, tendo que subir no animal para recuperar as rédeas caídas. Do lado de fora, com um pouco mais de claridade, pôde ver as sombras se desmanchando ao som de gritos desesperados. As outras criaturas foram deixadas para trás e a carroça se aproximava de um poste de luz.

- Sofia, despistamos aquelas coisas. Vou tentar parar a carroça na frente do poste e você acende o lampião de volta, mas precisa ser rápida.

- Vou procurar a querosene.

O cavalo atravessou o poste antes que Luís conseguisse desacelerá-lo, forçando a mudança de planos. Alguns metros depois, ele conseguiu parar o animal perto de um poste mais fraco, porém ainda eficiente. Ao olhar para trás, viu Sofia pegar imediatamente o galão metálico de querosene. Não conseguiu deixar de perguntar a ela:

- Você... Quer desistir disso?

- Não posso - ela disse colocando a querosene no lampião - Eu preciso desse dinheiro. Não estou mais conseguindo comprar comida e o aluguel precisa ser pago em três dias. E também pensei que talvez eu pudesse ajudar o Gennaro a sair da prisão com esse dinheiro - ela proferiu algum xingamento em italiano tateando o chão - Cadê esse fósforo. Achei! - ela acendeu o fósforo e, em seguida, o lampião - E você, pensa em desistir?

- Eu perguntei isso justamente porque também não posso. As coisas estão cada vez mais malucas. Minha mãe está morrendo de varíola. Nem temos mais a esperança de salvar seu corpo, apenas que Deus conforte sua alma, mas não temos nem dinheiro para o funeral, e ela era a principal provedora da família. Os moradores do nosso cortiço não estão conseguindo dinheiro o bastante para pagar o aluguel e corremos o risco de sermos despejados. A agenda dos proprietários é muito rígida, sem negociação. Um amigo tentou conseguir dinheiro roubando e foi preso.

- Luís, eu sinto muito pela sua mãe, de verdade - ela disse jogando o fósforo apagado no chão úmido da calçada - Já perdi muitos familiares. Que Deus ajude vocês nesse momento.

Um barulho interrompeu a conversa, chamando a atenção dos dois: um miado fantasmagórico ecoando pelo ar. Sobre o poste de luz, um gato totalmente preto de olhos verdes como esmeralda e ornamentos dourados em seu pescoço e cauda se espreguiçou confortavelmente e logo depois sentou-se, contemplando o horizonte sombrio com sua visão de criatura noturna, pleno como um rei.

- Que lindo - disse Sofia.

- De onde veio esse gato? E esses enfeites...

O felino pulou do poste para dentro da carroça, um salto difícil de se acertar com precisão nessa distância até mesmo para um gato. Luís não sabia se o cansaço estava alterando seus sentidos, mas o animal caiu de forma lenta e sem causar quase som nenhum ao chegar na madeira, quase como uma pena. O gato acariciou o joelho da italiana com a cabeça e ronronou.

- Vamos logo para o Museu - disse Luís - Antes que aquelas coisas voltem. E Sofia, você disse que nas caixas tinha uma estátua...

- Sim - respondeu - Ela é igual a esse gato aqui.



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1902 - As RelíquiasOnde histórias criam vida. Descubra agora