Há uma história engraçada que aconteceu recentemente comigo. Aconteceu de verdade, eu garanto. Talvez, um dia, você conheça alguém que passou por isso ou você mesmo tenha passado e agora se sinta compreendido. No entanto, não julgo caso não acredite. Só idiotas sonhadores acreditariam. Bem, nós já passamos por tanta coisa, certo? Uma história não faz mal. E tivemos que ver tantas coisas acontecerem em todos os lugares do mundo, perdemos um pouco de esperança e chegamos a pensar que o amor é uma verdadeira tragédia.
Tudo bem, certo, vamos seguir com isso. Em algum lugar, de repente, entre o meu coração e o estômago, morava alguém em um endereço que nem eu, a dona da “casa”, conheço. Sim, alguém morava dentro de mim. E foi o pior morador que já tive, e eu nem tive outros moradores para compará-lo. Pense comigo: “Como pode alguém morar dentro de outro alguém? É biologicamente possível?” Pois é. Por muitas noites, eu fiquei às claras pensando em tamanho absurdo. Uma pessoa morando dentro de mim. Que bobagem. Até faltei ao trabalho. Gripe? Problema no estômago? Dor no dente? Não, foi porque uma pessoa estava morando dentro de mim.
Não sei exatamente quando ele chegou, porque desde o princípio ele sempre age como se já fosse de casa, na verdade, às vezes age até como se fosse o verdadeiro dono dela. Será que já fomos apresentados e eu não lembro?
Temos uma relação complicada. Meu inquilino não avisa quando sai, passo alguns dias sem notá-lo, só percebo que saiu de férias quando estou com as costas leves. Ele não avisa quando volta para casa, mas sempre faz surpresa para que eu saiba que está de volta. Como é fofo. Quando ele está em casa, não para de fazer barulho, não respeita nem quando estou dormindo. Acordo no meio da madrugada, ele está andando pelo meu coração e aperta tanto... Fico sem respirar. Preciso levantar, tentar recuperar o fôlego. Sem dormir, pela constância de barulhos que faz pelo apartamento, eu perco o sono. Pensando, dando voltas em todo o meu cérebro falando palavras inaudíveis. Ele chegou a se tornar melhor amigo do meu Cérebro! É inacreditável, eu sei.
Não faz ideia de como ficava cansada. Eu não queria fazer absolutamente nada. Tudo estava pesado, o cansaço não ia embora e eu estava sempre com um nó na garganta (literalmente). Fiquei doente. Não dormia. Tudo dentro e fora de mim doía o tempo todo. Era um alívio quando ele estava fora. Sentia que estava de volta ao comando e que podia chorar quando sentia vontade e que poderia estar com quem eu gosto. O problema é que sentia que ele sabia quem eram meus amigos. Sua voz estava sempre ressoando em minha mente (Como ele chega até lá? Será que tem elevador dentro do corpo?). Ele dizia baixinho, como se fosse a minha própria voz “ninguém está ouvindo, por que está falando?” e eu nunca me sentia bem. Saía de casa como uma vencedora, voltava como a maior perdedora do mundo. Eu estou dando moradia, dando comida, fala sério, ele está dormindo melhor do que eu, por que me botava tão pra baixo? Por que não conseguia expulsá-lo?
Estava sempre caindo pelos lados, odiando e voltando a me odiar de novo e de novo. Ele é o problema e ele mora dentro de mim! Eu não tinha forças para diálogos, não tinha ataques, nada, nada, nada. Tudo ressoava apenas como “você é nada, nada, nada”. Silêncio. E eu queria o silêncio, o conforto da minha casa enquanto eu era uma casa.
Então, um dia, resolvi contar que tinha um inquilino. Estava caindo em exaustão e não conseguia mais lidar com isso sem ajuda. Estava estampado na minha cara o meu fracasso. Era como me sentia: uma fracassada. Todas as minhas conquistas não eram sinceras, todo o amor que recebia não era real. Eu estava convencida. Completamente angustiada e sozinha. Mas, acabei descobrindo que outro e depois outros também eram casas e que ninguém sabia exatamente como falar sem parecer absurdo. O que é estranho, realmente. Pessoas moram em casas, e, de repente, se tornam casas também. É engraçado. Nós, humanos, que botamos preço em tudo, enquanto ninguém paga para morar dentro de nós. Irônico. Cômico.
Certo, depois de nossas piadas desesperadas e melancólicas, nos mandaram para um “resolvedor de aluguéis”, que conversava diretamente com eles por nós. Durante as negociações para expulsá-lo de dentro, onde parei de cobrá-lo e ele parou de exigir tanto, o conheci, finalmente, conheci o meu inquilino.
Era uma parte minha falando, falando e falando.
A voz era tão baixa. Uma parte machucada, que vivia no buraco dentro do coração, que não suportava receber amor e cuidado sem ter inúmeros sentimentos de negação e ódio. “Não posso ser amado”, “Não quero ser querido”, “Dói em todo lugar”. O coração… ah, o coração estava tão destruído e mal cuidado. Com vazamentos, poças e estourado. Machucado. Sim, o coração, o meu coração estava machucado.
Ele não morava dentro de mim, era eu o tempo todo. Era uma criança envergonhada e machucada, que tinha muito medo. Quando a tiraram de dentro, ela cabia na palma da minha mão. Fria, tremendo-se, sem olhos. Mas ela sabia que eu era a sua versão adulta. Adulta e cansada. Eu a abracei. Choramos juntas. De repente, ela estava sorrindo. Tinha aquela dorzinha dolorida entre nós, entre essas duas versões de uma mesma pessoa.
Não consegui deixá-la naquela sala e não consegui mandá-la embora de mim. Era só uma criança. Era eu. Ela estava tão sozinha. E eu poderia amá-la se ela quisesse. E poderíamos viver, e poderia ensinar a ela como lidei com meus medos. Entre a memória da infância rejeitada e a construção adulta que temos tanta angústia, posso ensiná-la a sobreviver dentro de mim e consequentemente ensinar a mim mesma a como continuar.
Reconstruímos o coração, e ela fez as pazes com o Cérebro, parece que brigaram feio antes da minha primeira consulta. Os meus pulmões viraram o seu playground e agora sempre a escuto cantarolar à beira do ouvido, como se algo estivesse tinindo de dentro. As minhas costas parecem menos doloridas e eu sinto que posso voltar a acreditar em alguma coisa. Consigo me olhar no espelho de novo e vejo meu reflexo me encarar com orgulho. Estranho, não seria difícil de acreditar que é uma versão nossa em uma realidade que tudo está certo e que nos volta com olhares de “você vai ficar bem”. Afinal, se meu coração virou a cabana de uma criança, eu posso voltar a sonhar de novo.
Eu sei, inacreditável, né?
Corações machucados e crianças internas. Mas, acredite, o amor que podemos alcançar às vezes está em lugares inacessíveis (ou que achamos inacessíveis). E eu acho que posso ser uma boa escritora, como eu sonhava na época que o meu “querido inquilino” disse ser impossível. Acho que posso dar ouvidos aos elogios. Talvez eu compre um computador, estude, me inscreva em cursos. Eu posso até pensar em sorrir de novo. Recentemente descobri que tenho um sorriso bonito. Eu posso tentar. Sim, nós podemos tentar. Tenho espaço dentro de casa para comprar móveis novos e agora dentro de mim também.