(644 palavras)
A mulher cicatrizada mergulha no riacho para se limpar. Seu vestido branco e esfarrapado é molhado, molhado, e logo ela nota que seu gesto fora imprudente demais, vinda de uma mente tão cansada em esconder o que é. E a privacidade? Lá se foi com as ondinhas.
Ela sai da água fluida, e parece que as ondas levaram embora tudo que ela um dia já foi. Conhecendo-a, chuto que surgiu uma carinha aflita tão marcada em seus contornos esculturais judiados pelo mundo. Ela vem até mim, pois eu a esperava. Ouço-a chegar em passos tão fininhos, tão temerosos, como o medo inocente de uma criança após quebrar um objeto sem querer e estar indo contar para a mãe, e viro meus olhos para a beleza qual eu me apaixonei loucamente. Repentinamente, fico boquiaberto e totalmente chocado com o que vejo, em um silêncio tão inquietante que acompanhava meu olhar atônito. Num espasmo, falo: “meu amor… v-você… seu corpo… é como o meu!”.
Ela me encara em um silêncio mordaz, talvez se odiando pela revelação tão temida e insuprimivel ter ocorrido, finalmente ocorrido, pelo fato do seu vestido branco e esfarrapado ter ficado totalmente transparente quando encharcado. Possivelmente sendo esse o motivo de um semblante de pura dor recair em seu rosto e no sorriso doloroso que ela tenta formar, em um gesto suplicante e forçado, para tentar melhorar as coisas de alguma forma. Mas o que adiantaria? O que mudaria?
A cicatriz no seu peito estava maior que nunca, e já não sabia dizer se essa foi causa fisica ou uma representação do seu intimo tão ferido e costurado adentro, como um segredo que jamais deveria ver a luz.
O céu começa a trovejar e seus olhos pareciam o centro da tempestade. O vento corria mais que corria, mas não tanto quanto a sua vontade implícita de fugir daquele lugar, daquela situação que a fazia tão mal. Ela via que sua face de identidade, tudo o que foi e tudo que ela é, ser subjugada com a minha fala, e contorcendo mais a sua face debaixo da franja negra, uma mistura de coragem e medo ressurgem em seu rosto, como um espelho cinzento e quebrado encarando seu próprio reflexo tão atacado, mas tão resistente e inderrubável. Seus lábios se abrem, frouxos, e ela puxa muito ar em seus pulmões. Com um peso doloroso em seu timbre e semblante, ela fala: “mamãe disse que o mundo seria menos cruel se eu não fosse… dessa forma. E... eu apenas... escondi.”
Outro silêncio permeia no ar. A tempestade havia se passado em uma breve turbulência. O que vem depois da tormenta, apenas as nuvens extirpadas do céu revelam: o Sol, a doce calmaria. Em um momento de silêncio, a brisa calma corre entre nós dois e tudo que somos.
Apaixonei-me pelo meu semelhante feminino sem nem saber que éramos mais iguais em corpo do que imaginei. Em um piscar de olhos, notei como aquilo que nos compõe desde o útero pouco importa.
Puxo ela para mais perto com delicadeza, num impulso que apenas a paixão mais ardente proporciona, e falo:
"Não se aflija, meu amor. Eu te amo, eu te amo mais que tudo no mundo. Você é tão, tão linda, tão graciosa, tão perfeita.
Você sempre foi tão fria quanto ao seu corpo e tão gentil com os outros, mas tão pouco consigo mesma, com suas feridas. Fria e gentil, sim, como a lua.
A lua não é má quando você encontra conforto na solitude da escuridão. Mas deixe-me ser seu sol, meu amor.
Deixe-me ser, e farei brilhar com todos os raios o quão perfeita você é, sem segredos, nem culpas, nem mentiras.
Você é a única beleza que o mundo todo há de ver.
Te amarei de solsticio a solsticio, do primeiro ao último raio do dia.
Eu te amo"
Nota:
Espero que minhas palavras não tomem algum contexto errado nessa história e, consequentemente, machuque alguém que tenha questões com seu próprio corpo.
Escrevi isso depois de conhecer e viver muito com uma pessoa que lida com os mesmos problemas que a menina do conto, e diante os tantos fardos que vi essa pessoa enfrentar, queria, hoje, dar uma voz à essa questão.
Nem todos os detalhes do conto fazem jus à realidade, mas o "abstrato" e a moral foram sim tudo que meu peito queria dizer.
Do fundo do meu coração, espero que tenham gostado.Muito obg!
VOCÊ ESTÁ LENDO
Ecos
Short Storypequenos continhos da minha mente perturbada, com aquela pitadinha de vivência própria.