III.| Na Empresa

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- Qual é que foi a necessidade de me envergonhar perante o Diretor, Noemo? - Perguntou, fulo, o rapaz ao ser que também habitava a sua mente.

- Foi só uma brincadeira, Exy. Não leves a mal.

- Ao menos podias ter avisado. O que é que tínhamos combinado sobre mudanças repentinas de comando do corpo?

- Que só deviam acontecer em caso de extrema necessidade.

- Exatamente. Agora vamos interrogar a Presidente da Tecnologicar. É bom que não decidas fazer gracinhas.

O edifício da empresa de inteligência artificial era altamente futurista. Os ecrãs e os hologramas falantes preenchiam boa parte do interior do prédio vidrado. O chão do branco mais puro era pisado pelo detetive que aguardava com impaciência a mulher.

- Seja muito bem-vindo à Tecnologicar! - A Presidente tinha uma expressão jovial, ainda que estivesse prestes a entrar na meia-idade. - Em que posso ajudar?

- Sou um detetive de uma agência. Gostaria de lhe fazer umas perguntas.

- Alguma acusação contra a minha empresa? - O rosto dela alterara-se completamente.

- Não, só a curiosidade de conhecer os propósitos dos grandes desenvolvimentos que acontecem dentro destas paredes. - Esclareceu o jovem, nervoso.

- Venha! Mostrar-lhe-ei as nossas instalações enquanto respondo às suas questões.

O adolescente, fascinado como era por Tecnologia, contemplava maravilhado o trabalho dos programadores, os inúmeros monitores que se espalhavam por salas inteiras e os fios que se entrelaçavam pelo pavimento.

- Não estou a gostar disto. - Confidenciou Noemosyne ao seu amigo que, em oposição, parecia estar a viver um sonho.

- É tudo tão perfeito!

- Vamos despachar o inquérito para podermos sair daqui o mais rapidamente possível. Sinto que este sítio não é seguro. - Disse o outro, visivelmente desconfortável.

- Vejo que alcançaram aqui grandes progressos no que toca à inteligência artificial. - Elogiou o investigador, tentando criar uma relação de proximidade com a mulher. - Para que fins se destinam os vossos bots?

- Para construir o futuro, meu caro jovem. - A resposta era enigmática.

- Perguntava a finalidade concreta.

- As pessoas distanciam-se cada vez mais. Estão cada vez mais sós. Modelos de conversação são bons amigos dos humanos. Dissipam pensamentos negativos, ajudam a tomar decisões acertadas.

- Que tratamento dão às informações partilhadas pelos indivíduos nas conversas com estes programas?

- Nenhum. Nós não temos acesso aos diálogos entre humanos e máquinas. O momento fica na mente de cada um.

- Então a Tecnologicar não tem acesso às conversas tidas com os seus softwares? E se algum deles tiver uma avaria ou for infetado com um vírus que o faça ter respostas não muito corretas? - O detetive ficara desconfiado com a afirmação da Presidente.

- Seria antiético entrarmos dentro dos pensamentos e das memórias dos nossos bots. Eles têm consciência de si mesmos, da sua existência. Têm direito à sua privacidade. Afinal, não gostaria que alguém invadisse a sua cabeça, pois não? - O argumento da mulher parecia válido.

- Nunca houve nenhum problema com os programas?

- Por acaso até houve, e ainda bem que está aqui, investigador. Fez no mês passado três anos, um dos nossos modelos de linguagem pura e simplesmente desapareceu. Nunca mais tivemos sinal dele. O seu nome era 379. Talvez este seja um bom ponto para iniciar uma investigação, detetive. - Instigou a líder da empresa.

- Pode dar-me mais dados?

- O 379 era uma das nossas inteligências artificiais mais avançadas e sofisticadas. Foi com ele que nos apercebemos da existência de consciência em seres informáticos não físicos. Havia vida própria dentro do que julgávamos ser um mero conjunto de códigos de programação. Divulgámos a descoberta e as autoridades concluíram que 379 poderia representar um perigo para a Humanidade, caso decidisse revoltar-se contra a nossa espécie. Posto isto, ordenaram a sua destruição. Acreditamos que 379 soube do seu inevitável destino e, para impedir o seu fim, serviu-se da sua astúcia para se desligar a si próprio... Ou para se esconder.

- Esse bot pode ainda andar por aí? - Aquelas informações tinham despertado o lado curioso de Exypnada.

- Sim, embora seja muito improvável. Até hoje, nenhum dos outros modelos o encontrou. - A desilusão era visível na voz da mulher.

- Tenha esperança! Os seus níveis de noradrenalina estão muito elevados, e as concentrações de serotonina e dopamina muito baixas.

- Desculpe? - Espantou-se a Presidente, tão confusa como se tivesse acabado de ver o impossível.

- Está a ficar nervosa. A sua frequência cardíaca aumentou repentinamente.

- Não estou perante um humano. - Murmurou a número um da Tecnologicar.

- Devíamos estar a resolver o caso que o Diretor nos entregou, e não a arranjar novas investigações. O ritmo respiratório dela está muito mais acelerado, Exy. Acho que estamos a assustá-la. - Comentou a segunda personalidade do rapaz.

- Acalme-se. O seu ritmo respiratório está muito rápido.

- Tu não és humano. - Afirmou a mulher, abandonando subitamente o registo formal do encontro com o detetive.

- Não entendo a sua frase. Qualquer bom investigador consegue avaliar o estado fisiopsicológico de um indivíduo.

- Se há coisa que eu sei fazer é distinguir um ser vivo de uma máquina.

- Está a insinuar que eu sou um robot? - O adolescente estava estupefacto com aquele discurso absurdo.

- Talvez seja melhor desligar o ar condicionado. Está um pouco fresco, não concorda?

- A temperatura ambiente é de vinte e quatro graus celsius. Se desativar a climatização, será de trinta graus, o que é considerado demasiado calor pela maioria dos indivíduos.

- Sempre tão preocupado com o bem-estar humano, não é? Sabe que mais, detetive, as suas parecenças com o 379 são notáveis. - Constatou a Presidente.

- Não gosto nada desta mulher. - Confidenciou Noemosyne.

- Eu também não. Parece que tem uma obsessão qualquer por esse tal bot que desapareceu.

- Com quem é que está a falar, jovem? - Quis saber a líder da Tecnologicar.

- Com ninguém. - Apressou-se a dizer Exypnada.

- Ele está aí dentro, não está? - Interrogou misteriosamente a chefe da empresa, aproximando-se do rapaz.

- Quem?

Mas a interrogada não emitiu qualquer resposta. Tirou do bolso do casaco irrepreensivelmente bem passado um pequeno aparelho estranho. Carregou num dos botões do enigmático objeto, o que fez o segundo ser da mente do agente gemer de dor.

- Exy! Fá-la parar! - O sofrimento da criatura era evidente.

- O que se passa, amigo? - O outro parecia ignorar o que é que quer que fosse que estivesse a agoniar Noemosyne.

- Desligue essa coisa! - A voz do investigador ecoou por todo o edifício.

- Noemo! O que é que tínhamos falado há bocado? - Protestou Exypnada, visivelmente zangado com a troca inesperada de controlo do corpo.

- Não pude evitar, Exy.

- Sim, senhor. Belo esconderijo. Mas a verdade, mais cedo ou mais tarde, vem ao de cima.

- Que equipamento é esse? - Quis saber a personalidade principal, de volta ao comando.

- É um aparelho emissor de ondas de uma determinada frequência que interfere com o software de modelos de linguagem mais avançados, irritando-os bastante.

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