Liberdade e tragédia

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"Eu sou a velocidade". Lembrei dessa frase de um de meus filmes favoritos quando eu era criança, momentos antes de descer com tudo, sem me preocupar com o que iria acontecer.

Eu sempre fui fascinado pela ideia de pegar uma estrada e poder correr livremente com tudo que eu tinha, sentido a pressão do vento contra o meu corpo, admirando a paisagem que me cercava, deixando os meus pensamentos se fragmentarem em partes mais simples, não necessariamente aliviando minha tensão, mas com certeza tornando mais suportável. Eu era apaixonado em ser a velocidade.

Minha querida companheira vermelha era a representação de sensações antigas que eu já não sabia como resgatar: a empolgação, a vontade de prosseguir, o desejo de ir além! Era uma representação do meu eu, e de toda a fome que eu tinha pela vida.

Mas alguma coisa mudou de uns tempos pra cá, e a minha paixão se tornou um desejo constante de uma válvula de escape mais fácil. Ao longo do tempo, percebi que toda a vontade de viver que eu tinha sumiu magicamente.

E chamar de mágico é ainda uma pequena máscara, afinal de contas, todas as marcas de unhas e sangue que deixei nessa prisão que eu chamo de corpo e de mente sentem-se ofendidas com a menção do incerto.

E é justamente de incertezas que vive o meu eu agora, e a verdade é que fui capaz de macular com meu sofrimento não apenas a mim, mas levei meus frutos de infância e desejos infantis para a vala.

Afinal, diferente de todos os modos em que pensei em tirar minha vida, minha moto tinha a vantagem de ser ligada intrinsecamente ao acaso.

Muitos talvez nem pensassem que eu poderia querer aquilo, afinal de contas, todo mundo vive para evitar um acidente no trânsito. Mas a principal questão que permeia tal ideia é a vantagem de não ter tempo para me arrepender.

Eu imagino cena por cena de como seria o meu fim: Eu sentiria momentos antes de ligar toda a tristeza que vem me consumindo, pensaria que agora eu já não sou mais capaz de suportar o cotidiano, que eu não consigo mais ir além, que eu não posso mais dar o melhor de mim todos os dias e a todo momento. Eu lembraria por fim, que pela primeira vez, eu havia demonstrado fraqueza, e que eu não era mais digno de viver.

Eu acho que eu penso tanto em transformar minha forma de liberdade em meu fim porque estou perdendo o gosto pela vida, e mesmo as mais simples questões, meus pequenos prazeres diários, se tornaram incapazes de conter o sentimento horrível que me percorre. Então, numa tentativa de salvar algo, eu transformo meu deleite em minha sentença.

Quero tanto ter um pouco de paz, e eu já tentei tanto, que só espero agora um fim digno para a minha história. Mas eu tenho muito medo. Medo de me arrepender no último momento, medo de minha dor se mostrar insuficiente para prosseguir com minha trágica saída, medo de perceber que eu poderia ter aguentado um pouco mais de tudo antes de decidir por um ponto final.

Todos os dias dói tanto, perceber a grandeza da vida e o quanto eu sou incapaz de apreciar tudo. Pensar em amor e sentir que eu projetei tão longe minha dor, que não importa qual tipo de amor, ou de quem venha, ele nunca parece suficiente para me impedir de tentar encontrar meios para desistir.

O meio de agora é meio irreal para mim também. Afinal, carece de que eu vá além. Não pode ser algo casual, algo que vai me machucar e apenas dificultar ainda mais as coisas. Precisa ser algo preciso, intenso, descontrolado e emocionante em todas as suas fases.

E para isso, meu fim em minha companheira de liberdade seria ideal. Tudo seria sobre o quão rápido eu conseguiria ir, quanta velocidade eu poderia exigir, e o quanto meu senso de autopreservação seria superado pelos segundos ínfimos de adrenalina...

E por fim, quando eu me chocasse com alguma coisa, seria na explosão de um momento, que poderia durar muito em minha mente, mas que seriam meros segundos da realidade, sem tempo para pensar em que eu iria deixar, sem tempo para pensar no que eu poderia ter alcançado se não fosse o medo e a dor, sem tempo para tentar chorar uma última vez.

E faria sentido. Uma parte minha quer muito acreditar nisso, testar os limites do quanto eu consigo acelerar em um espaço curto de tempo, e se quando a oportunidade chegasse, eu não arriscaria até mesmo a sola de meus sapatos para tentar frear. E eu preciso que dê certo, as possíveis consequências de meu eu que desistiu no último momento condenariam minha vida para algo pior que a morte.

Mas na convicção de minha força de vontade, eu padeceria com os hematomas de minha sina dolorosa, ceifado juntamente com aquela que um dia foi o símbolo máximo de minhas aventuras e liberdades, apenas com o peso do metal destroçado em meu corpo, e com um amontoado de sentimentos que não teriam mais propósito.

Pois para cada pessoa que amei, para vida em que me imaginei, por todas as palavras que eu escrevi tentando entender o que eu senti em toda minha jornada, o próprio modo como encontrei de fugir, de me matar, e os segredos que serão facilmente entendidos ou perdidos quando meu último suspiro vier eivado pelo gosto ferroso do sangue, ou marcado pela quebra de meus ossos já não tão firmes...

Nada disso vai importar, afinal de contas, naquela descida, segundos antes do meu fim, eu deixaria tudo para trás, e uma última vez eu conseguiria alcançar algo, que provavelmente não valeria a pena, mas que seria suficiente para quem eu sou hoje. Nada disso vai importar porque mais do que nunca, eu não seria humano, não haveria fraqueza alguma, pois eu seria um conceito, uma força, constante e absoluta até o fim...

Eu seria a velocidade, a marca da minha liberdade, e de minha tragédia

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