Minha perda, minha fuga

2 0 0
                                    


Um grande surto de meningite tomou conta de Castelo, minha cidade natal, era uma doença nova que levou muitas vidas, tanto de jovens como adultos por um longo tempo. Os alarmantes números fizeram as autoridades locais declararem um estado de calamidade e ficamos todos a mercê das circunstâncias, nosso ir e vir começou a ficar restrito por conta do contágio, muitos de nós éramos chamados para o auxílio e amparo as pessoas doentes. Minha família era pobre, mas minha mãe sempre teve um coração solidário e nos arrastava para essas obras beneficentes, eu ficava irritada de viver aquela situação repetitiva, de ofertar o pouco que tínhamos. Angustiava-me ver aquelas pessoas doentes, jovens, crianças, adultos, todos esperando uma cura. Minha mãe se desdobrava em trabalhos, mas sorridente de um lado para o outro ela só nos levava para casa ao anoitecer, eu voltava sempre irritada, não conseguia sorrir como ela.

Numa noite, ao voltar dos trabalhos de auxílio, olhei e vi minha mãe pálida, quieta, seus olhos pareciam ter perdido a luz, a perguntei por várias vezes o que ela tinha, mas simplesmente sorriu me pedindo para ocupar o lugar dela no hospital, porque ela não poderia estar mais lá, pediu ainda, que lhe fizesse a promessa de não rejeitar o trabalho e para agradá-la eu disse que sim, e ela adormeceu feliz. No dia seguinte ela demorou a se levantar, então fui chamá-la, pois estávamos com fome e não havia nada pronto. Quando cheguei ao quarto dela pude perceber que estava morta, seu corpo estava frio, sua face entristecida, toquei no seu rosto e então fechei os olhos dela. Não tinha uma lágrima em meu rosto, queria chorar mais não conseguia, sai correndo de lá e comecei a gritar, percebi que a casa logo ficou cheia de vizinhos e amigos, que murmuravam alto e sem parar, lamentando a morte dela, eu fui desaparecendo no meio deles. Saindo, eu sentei na calçada e meu coração esfriou por dentro, senti meu corpo gelar, meus lábios enrijeceram, eu sentia muita raiva, muita mesmo, pois, ela vivia no auxilio ao hospital e o governo nem soube da morte dela, era mais um número, só mais um. Depois de dar adeus a minha mãe, fomos levados para a casa das irmãs Santas, lá com certeza viveríamos por mais tempo. A casa delas era um lugar de oração e obra assistencial, mas tudo que eu fazia, era desprezar esses trabalhos, percebi então, que realmente não conseguiria cumprir a promessa que fiz a ela. Em crise de angustia fugi de lá ainda jovem, viajei grande parte dos caminhos me escondendo e fiz a promessa que viveria apenas para mim. Passado dez anos, eu já não era mais uma criança, porém nunca esqueci as dificuldades que passamos com a ausência de minha mãe. Enquanto estive fora, fui acolhida em outro hospital, e lá fazia tratamentos pelas crises existenciais, que estranhamente eu tinha, mas não participava, como voluntária junto aos outros, não me permitia mais, achava injusto e todos que me conheciam me criticavam afirmando, que eu não estava num bom caminho. Para mim pouco me importava o que diziam, eu não passaria dificuldades como minha mãe e se tivesse que dividir algo seria para um bom retorno. Cresci e me fortaleci assim, com a certeza muito grande que quanto mais eu buscar para mim mesma, seria o melhor a ser feito, trabalhos solidários não estavam mais na minha vida, a única certeza que eu tinha era, que trabalhar me fortalecia, ajudava a cuidar de mim e de minhas necessidades. A lembrança de minha mãe era uma marca muito forte em mim, a via morrer todos os dias em meus pensamentos, jurei não ser como ela, eu a amava muito, não conseguia me separar dela, mas não pude cumprir a promessa que fiz, por não mais acreditar que valeria a pena.


O Refúgio das almas, o resgate de VerônicaOnde histórias criam vida. Descubra agora