Tentação

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Crowley se considerava um bom demônio. Não "bom" no sentido de Benevolente, mas Bom porque era extremamente qualificado, ainda mais quando se comparado aos demais membros das hordas demoníacas.

Sendo um demônio da melhor estirpe, feliz em causar o caos e tentar os humanos, tinha sempre dúvidas sobre sua antiga amizade com Aziraphale. Como podia um demônio ser amigo de um anjo? Ainda mais um tão... tão... angelical?

Sempre se contentava com a velha história "estamos na terra a milênios", "ele é o único rosto constante por séculos", "nos conhecemos antes de estarmos em lados opostos", "salvamos o mundo e impedimos o armagedon". Essas coisas eram motivos plausíveis para aturar uma pessoa, para conversar de vez em quando, para sentar e tomar um vinho, a cada 100, talvez 200 anos.

Então porque passava tanto tempo em sua livraria? É claro que morar no carro não era exatamente confortável, por mais que adorasse o Bentley. Mas até mesmo ele sabia que aquilo era apenas uma desculpa, se realmente tivesse interesse poderia ter arrumado outro apartamento. Em vez disso passava a maior parte de seu tempo naquela livraria abarrotada.

Mal tinha o que fazer naquele lugar. Não havia televisão, apenas livros. Livros. Livros. Mais livros. Aziraphale amava livros. Colecionava aquilo a séculos, desde que os humanos aprenderam a colocar as ideias em papel e costurar as folhas em tomos.

Tudo o que Crowley fazia naquele lugar era tirar os livros do lugar. Pegava vários volumes das prateleiras e os empilhava no braço, caminhando pela enorme casa/livraria, até jogá-los em algum canto, apenas para atrapalhar a classificação que Aziraphale tentava manter.

Hoje, porém algo estranho tinha acontecido, uma mera humana, com sua curiosidade humana, tinha feito uma pergunta que nem mesmo Crowley se atrevia a trazer para a luz.

O que eles eram? Eram um casal? Companheiros? Estavam juntos?

Era absurdo que Maggie pensasse aquelas coisas a respeito deles. Um anjo e um demônio... juntos! Impossível. Jamais aconteceria. Ao menos foi o que pensou na primeira garrafa de vinho, sentado na cadeira favorita de Aziraphale, na livraria escura.

Era um absurdo... não era? Não existia interesse romântico na relação entre anjos, não havia a necessidade desse tipo de relacionamento. Talvez o mero cogitar essa possibilidade fosse apenas um reflexo do convívio prolongado com os humanos, com suas necessidades afetivas e sexuais, não dizia realmente respeito a eles.

Mas se era absurdo, porque passavam tanto tempo juntos, quando não tinham nada em comum? Porque a presença do anjo o incentivava a fazer as coisas certas, mesmo que por meios deturpados? E porque sentia aquela necessidade de estar por perto, de provocar Aziraphale, de lembrá-lo a todo momento de sua existência, e de garantir que estivesse em segurança?

Porque eram... amigos?

A segunda garrafa do Tannat já estava pela metade quando Crowley se permitiu admitir que sim, pensava naquele ser angelical de modo diferente. Já tinha tido alguns outros amigos ao longo de sua existência, mas Aziraphale era realmente diferente, e custava muito de seu orgulho admitir aquilo.

Já tendo aceitado que sentia... alguma coisa, se criara agora outro problema: o que fazer a respeito?

Não parecia uma atitude devidamente demoníaca guardar aquela informação para si, quando poderia facilmente torturar Aziraphale com seus recém descobertos... sentimentos.

— bloody hell!! — Crowley praguejou, levantando da poltrona. — Qual o pior que pode acontecer?

O demônio pegou a garrafa de vinho, e subiu as escadas.

O quarto de Aziraphale ficava no andar de cima, poucas vezes tinha ido lá, o próprio anjo passava pouco tempo naquele lugar, mas parecia conveniente que A conversa fosse especificamente naquele cômodo, que os humanos achavam tão íntimo.

Tentação - e outros contosOnde histórias criam vida. Descubra agora