Tentação - e outros contos

Dai-me castidade

Aziraphale fechou o livro com força.

Abria e fechava a boca silenciosamente, em indignação, enquanto olhava ao redor pela loja vazia.

- não é possível... - ele sussurrou - ele não faria...

Uma última olhada sobre o ombro confirmou que ninguém estava na livraria àquela hora tardia da noite, e o anjo abriu novamente o livro. Apenas um pouquinho, com muito, muito cuidado, para que as palavras não saltem das páginas.

Seus olhos correram as últimas linhas lidas, e um pouco além do que sua surpresa tinha lhe permitido ler, então fechou novamente o tomo, cobrindo os olhos com a mão, como se bloqueando sua visão também pudesse impedir as imagens vívidas em sua mente.

- faria... ah, ele faria... - sussurrou novamente - e fez, aquele demônio traiçoeiro.

"O que tem eu?" Imaginou ouvir, mas Crowley não estava lá, se estivesse, teria gingado entre as estantes, como uma cobra, e se esparramado na poltrona à sua frente. Uma taça de vinho na mão e o sorriso cínico nos lábios provocadores.

Deveria ter imaginado, claro que deveria. A serpente não era dada à presentes, qual foi o último? uma maçã? e olha a confusão que aquilo tinha causado. Se uma simples fruta causara um estrago daqueles, sendo oferecida a uma humana, o que um livro como esse faria a um anjo?

- um presente, ele disse, víbora rastejante... mais um romance para sua coleção... oh lord - continuou seu monólogo. - e ele nem ao menos comemora o Natal.

É claro que havia alguma artimanha naquele ato aparentemente inocente.

Era de conhecimento comum que Aziraphale colecionava livros. Antigos, primeiras edições, autografados, exemplares de personalidades mortas a anos. É claro que estranhou uma primeira edição novinha, recém saída da editora. "porque esperar séculos se você pode tê-lo agora?", "um dia ele será uma raridade, e você será o único dono", "talvez nem mesmo tenha uma segunda tiragem".

Crowley tinha dissertado alguns minutos sobre a importância de comprar os livros novos, ajudando os pobres humanos que escreviam aquelas histórias, e enfatizando que a maioria deles nem ao menos chegariam em boas livrarias, nunca seriam de fato conhecidos, sumiriam com os anos. Mas ali, na sua livraria, Aziraphale tinha a chance de ter uma coleção valiosíssima, tudo o que precisava fazer era aguardar alguns anos, e aqueles exemplares desconhecidos seriam únicos.

Sua empolgação foi enorme naquela noite: Era Natal. Tinha convencido Crowley a usar um sueter tricotado à mão, uma serpente com gorro e cachecol, cuidadosamente desenhada na frente. Ganhara um presente, e o melhor, um livro. Decidira começar uma nova coleção, novos estilos de leitura, e ainda ajudaria centenas de humanos.

O livro não combinava em nada com os outros, antigos, capas de couro, gravação a ouro, baixo relevo, alto relevo. Nada comparado às capas modernas com orelha, fotos e muitas informações, não eram... artesanais, mas eram artísticos. Uma estante separada resolveria o problema.

Claro que aquele pensamento foi antes de tentar de fato ler o livro. Crowley nem ao menos tinha permitido que o abrisse, alegando que não fazia sentido ficar lá se o anjo passasse a noite lendo, apenas uma artimanha, para não estar presente quando Aziraphale descobrisse o tipo de livro que lhe deu.

- agressão... chicote... e... e...

Aziraphale mal podia pensar no resto. O quanto daquele absurdo tinha lido até se dar conta do que estava acontecendo? Foram várias páginas até que o contexto fizesse sentido. Parágrafo atrás de parágrafo de personagens bem construídos, até chegar naquele... naquela... e ainda tinha o professor, a quem chamavam de demônio, era muita ousadia de Crowley.

Perplexidade; pelo conteúdo, indignação; pela ousadia de Crowley, agonia; por nunca abandonar uma história. Todas essas coisas fizeram Aziraphale largar o livro na mesinha à sua frente e ir até a estante em busca de outro.

Jane Austen era uma boa opção, com certeza. Com seus bailes, pianos, conversas acaloradas na chuva. Mas por mais que Mr Darcy fosse um de seus personagens favoritos, o livro na mesa parecia chamá-lo. O que tinha acontecido com o aluno nada exemplar? ele conseguiria passar na matéria? e o professor demônio com tendências violentas? Será que encontrava iluminação e se tornava menos... demôniaco?

Antes que se desse conta os livros tinham trocado de lugar, Mr Darcy descansava esquecido na mesa, e o livro pecaminoso ia adiantado, página após página era devorada, acompanhada de vinho e queijos. Não era seu hábito beber quando estava sozinho, mas com aquele livro parecia estranhamente apropriado.

Acabou o livro pouco depois do amanhecer, e a indignação que sentira no início tinha sido substituída por outra coisa, uma necessidade.

Antes do meio dia o anjo retornou a loja, depois de um passeio em várias livrarias. Tinha agora uma boa quantidade de livros... adultos, de todos os tipos, indicações de diferentes vendedoras, que tinham parecido divertidas com seu constrangimento ao procurar aquele tipo de literatura.

A irritação com Crowley diminuía a cada livro devorado, embora a cada ligação do demônio o anjo se recusasse a recebê-lo, inventando uma desculpa diferente por vez. Sentia-se até mesmo triunfante, porque se a intenção da cobra era deixá-lo desconfortável com os livros, algo que amava a séculos, então ele tinha falhado lindamente. Embora tivesse sim ficado chocado no início, aquele tipo de livros pareciam refletir muito mais os humanos de verdade, do que os romances perfeitos que vinha lendo a décadas.

Por sorte não precisava realmente trabalhar para viver, pois vários dias tinha passado lendo, fazendo intervalos apenas para cozinhar uma refeição que comia em frente a um livro, devorando um ou dois por dia.

Desjejum após virar a noite lendo era uma das suas coisas favoritas, principalmente se era acompanhado de uma boa xícara de café e mais um livro, para evitar a "ressaca literária", como suas colegas livreiras tinham chamado.

O prato já estava vazio e a xícara milagrosamente cheia, quando o livro escapou dos seus dedos, quicando no tapete e fechando-se, sem ao menos perturbar o anjo adormecido.

Continua..