Já era noite, estava sendo arrastada para o ritual de Astarte com roupas que não pertenciam mais a mim.
As lamparinas acesas e o cheiro de incensos à Astarte tomavam conta das ruas cheias e movimentadas, todas as pessoas indo ao mesmo lugar, no intuito de prestar culto a deusa da fertilidade, cônjuge de Baal.
Logo chegamos ao círculo de pedra e avisto o Poste Sagrado em seu meio. Ao lado do poste, uma mesa de pedra com amarras se encontra. Meu medo sempre foi ser designada para estar lá.
As sacerdotisas de Astarte eram escolhidas no dia de seu nascimento, a cada ano uma garota era tomada como sacerdotisa. Eram ensinadas a fundo os rituais, práticas e oferendas a deusa, e elas crescem sabendo que estão fadadas a serem o sacrifício inicial de cada ritual no ano em que completassem 12 -que se era obrigatória a participação nos rituais.
Logo uma garota vestida de branco – simbolizando sua pureza – entra no círculo de pedra e todos começam a entoar um cântico a deusa Astarte.
Oh querida deusa
Abençoe nosso povo
Que nossas mulheres gerem filhos
Que o prazer esteja conosco
O ato que faz conceber sacerdotisas e sacerdotes
Seja consagrado a ti
Querida deusa AstarteA pobre garota é deitada sobre a mesa e são amarrados seus pés e suas mãos.
O sacerdote se posiciona pedindo silêncio.
— Que nesta noite, venha a ser concebido uma sacerdotisa ou sacerdote, por meio do ato que consagramos a nossa deusa!
Os rapazes começam a chamar moças, para após a consumação da sacerdotisa a mesa, irem para o bosque.
Mentalmente pedia para que o Deus de Israel me livrasse deste momento, mas, infelizmente, um rapaz para em minha frente e estende sua mão.
Suas vestes eram diferentes dos demais, suas características não eram agradáveis aos olhos, mas por algum motivo, senti a necessidade de ir com ele.
Meu pai me cutuca para que eu vá e me levanto sem tirar os olhos deles.
Ele me puxa para o caminho de partida onde devemos esperar a consumação e em nenhum momento tira seus olhos de mim.
— Olhe para mim, não desvie seu olhar, nem para a direita, nem para a esquerda.
Seu olhar era diferente, ele não me olhava com malícia, assim como os rapazes influenciados pelo ritual.
“O que é isso em seus olhos? Parece... Amor...”
Me perco na imensidão de seus olhos, tudo ao meu redor parece sumir, de repente somos só eu e ele, repletos pela paz que senti aquele dia com meu marido.
“Será que o Deus de Israel atendeu meu clamor?”
Sem notar os minutos passados, ele me puxa em direção aos bosques, assim que seus olhos se desviam do meu saio do transe em que estava e então ele some em meio a mata.
“Onde será que ele foi?”
Logo ouço um barulho atrás de mim e um homem com vestes parecidas se aproxima.
— És a Orfa?
Me assusto ao ouvir meu nome.
— Quem... Quem és tu?
Ele me encara e demora a responder.
— Sou um Judeu, é tudo que precisa saber.
Começa a me puxar e me solto.
— Não é não! O que um Judeu faz em Moabe? Acaso não sabes as imoralidades que acontecem aqui?
Ele respira fundo e volta a olhar em meus olhos.
— Não, eu não sei. Agora, podes vir comigo?
Sem dizer uma palavra a ele, ele insiste.
— Por favor, não irei lhe fazer mal e nem lhe obrigar a fazer nada que não queira. Apenas venha comigo!
Não relutei, nele eu vi resposta do Deus de Israel e o segui.
Fomos até minha casa - a seu pedido - e ele diz para trocar minhas vestes, enquanto me espera fora da tenda.
— Já me vesti!
Falo alto para que ele possa entrar.
— Junte suas coisas e venha comigo.
— Para onde?
Ele ri e respira fundo.
— Não temos tempo! Apenas pegue suas coisas!Faço o que ele diz e logo ele toma minhas coisas de minhas mãos, carregando-as para mim.
Caminho ao seu lado, em direção ao mesmo lugar em que tempos atrás deixei minha sogra e minha cunhada.
Eu estava cheia de perguntas, mas sabia que ele não me responderia.
Caminhamos até o sol nascer, meus pés cansados começam a tropeçar e minha garganta pede por água.
— Aguente firme, estamos chegando em Judá.
Ele diz com um tom de preocupação olhando em minha direção.
— Eu estou bem...
Ele ri ajeitando a troncha com meus pertences em seu ombro.
— Vistes graça em algo?
Digo tropeçando a cada passo.
— Dizes que está bem, quando, claramente, está caindo de cansaço!
Solta uma risada mais leve.
— Sim, estou cansada! O que esperavas?
Digo emburrada.
— Não disse que esperava nada.
Diz divertido.
— Tu... Não dá para conversar contigo!
Aperto o passo, passando em sua frente.
— Estamos chegando! A casa de meu senhor é uma das primeiras na entrada de Judá.
Me alcança.
— Quem é teu senhor?
Ele sorri e vejo seus olhos irem longe.
— Boaz.
Balanço a cabeça, sem saber de quem se trata.
— Por que me revelas quem é teu senhor, mas não dizes quem tu és?
Aquele sorriso permanece em seu rosto e ainda sem me olhar, diz:
— Simplesmente, porque não quero!
Reviro meus olhos desistindo de tentar arrancar algo dele.{~•~}
Chegando em Judá, logo nas primeiras casas eu avisto minha cunhada, Rute.
Inconscientemente, paro onde estou e fico a observando de longe. Vergonha, arrependimento e tristeza me invadem junto com as lembranças que temos juntas.
“Eu as deixei... Não sou digna de dirigir palavra alguma a ela.”
Com os vasos de água, vazios em seus ombros, ela caminha em direção ao poço. Virando em minha direção, ela me vê, mas diferente de mim, um sorriso se abre e ela corre em minha direção me tomando em seus braços.
— Como senti sua falta, cunhada!
Sinto suas lágrimas molharem meu véu e então retribuo seu abraço.
— Eu... Eu sinto muito, Rute. Não devia telas deixado!
Seus braços me apertam mais forte antes de me soltar e me avaliar.
— Vamos! Nossa sogra está a sua espera.
Começa a me puxar, mas logo paro, fazendo com que ela me olhe confusa.
— Não sou mais digna de ser chamada nora de Noemi, nem sua cunhada. Pois no momento de aflição, eu as deixei.
Seco minhas lágrimas me soltando de sua mão.
— O que está dizendo, Orfa?
Respiro fundo dando um passo para trás.
— Eu deixei vocês, deixei o Deus de Quilom, enquanto tu escolheu o certo, eu fui covarde e voltei para a perversidade.
Mais lágrimas caem em meu rosto e abraço meu próprio corpo.
— Estou suja, eu as traí, não sou digna de estar nesta terra do Deus Santo!
Rute seca minhas lágrimas e ao longe escuto passos.
Uma figura masculina se aproxima, mas não enxergo em meio as lágrimas.
— Por que choras?
Rute segura sua mão e eu luto contra as lágrimas para enxergar.
— Cunhada, este é meu marido, Boaz.“Marido..?”
— Seja bem vinda! Rute e Noemi me falaram de ti!
Ele sorri simpático e a dor só aumenta em mim.
— Perdão, senhor Boaz, mas não tenho mais parte com elas!
Abaixo a cabeça e Rute suspira.
— Não sei o que fazer com ela, marido! Parece que não entende!
Ele ri e os olho confusa.
— Entender o que?
De forma terna – como um pai que nunca tive –, Boaz me olha.
— O Senhor Deus, ouviu seu clamor! Meu servo, Joaquim foi ao teu encontro após Noemi sonhar contigo e Rute pedir para eu socorrê-la. Fui resgatador de Rute, e cuidarei da cunhada dela, como parente minha!
Incrédula, continuo dando passos para trás.
— Mas... Eu não clamei em um templo, pelo contrário! Eu estava em meio a perversidade e pecado!
— Mas seu coração sempre esteve no Todo Poderoso! E Ele socorre aqueles que o pedem.
Abaixo a cabeça e seguro as lágrimas.
— Obrigada, meu senhor, obrigada por ter ouvido Teu Deus e me amparar juntamente com Noemi e Rute!
Rute me abraça e logo me guia para sua casa.
— Joaquim já deixou suas coisas no quarto, que é de nossa sogra. Dividirá com ela!
“Joaquim? Então seu nome era Joaquim!”
— Ainda estou tão envergonhada!
Rute suspira mais uma vez e me faz olhar para ela.
— Pare com isso!
Sorrio e então a voz de nossa sogra ecoa pelo ambiente.
— Orfa, minha nora!
Ela vem até minha e me abraça.
— Me perdoe, sogra!
Minhas lágrimas correm em seus braços, por estar me sentindo em casa novamente.
— Está tudo bem! Você está bem agora! Estamos aqui!
Seus braços me apertam mais e Rute entra no abraço.
Ficamos alguns minutos assim, juntas.
“Como é bom estar em casa! Obrigada, Deus de meu marido! Obrigada por me socorrer!”
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Alcançando Misericórdia (Conto) +14
Narrativa generaleUma Releitura Cristã do livro de Rute. Nós sabemos como foi sofrido para as três mulheres viúvas. Sem marido ou filhos em uma época que mulheres não tinham direito de herança. Sozinhas e desoladas, sem ter para onde ir. Sabemos o caminho que tomou N...