Pés na areia

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Deserto

Prólogo: Pés na areia


O sol atravessou a fresta da janela e atropelou meus olhos. Os fechei rapidamente enquanto suspirava.

— O que foi agora? — Clotilde nem desviou o olhar de sua papelada ao se dirigir a mim.

— Eu estou exausto nessa… — ela me fitou e seu olhar diz claramente que ela não quer me ver xingando hoje — Joça! — me contenho.

— Novidade! — retruca — Nem precisava reclamar sobre isso. Sua irritabilidade está escrita na sua testa.

— Como assim?

— Está com rugas, né. Sinal de seu mau-humor.
Clotilde chegou na empresa há uma semana e nem me recordo quando ela pegou esse nível de intimidade comigo. Talvez, por ela ter agido assim que a deixei se aproximar!  O restante dos nossos colegas apenas me incentiva a reclamar.

Voltei a editar documentos para finalizar a semana do meu setor.

Passou mais alguns minutos e novamente algo começou a me irritar. Uma vaga lembrança de algum desentendimento.

— Aquele infeliz! Ou! — a cutuco — Tu soube que o Márcio saiu do turno mais cedo e foi pra uma churrascaria? Aquele infeliz acha que pode ser o chefe da coisa toda! Não tem dinheiro para pagar um jantar de confraternização da equipe. Mas, o miserável tem para ir a uma churrascaria! Palhaçada.

— É uma comemoração da sobrinha dele que passou no Enem! Misericórdia! Nunca vi um homem com 28 nas costas ser tão chato!

— Ah, cala boca, Clotilde!

— Por falar em chateação… Tu não disse que foi à igreja no sábado? Como foi o culto? Me diz a localização porque eu tô querendo ir também.

Volto a minha papelada com um leve nó na garganta.

— O que tem a ver chateação com a Igreja?Esquece! Ah, nem fui. Tava cansadão do trampo. Nesta quarta eu vou. Te mando a localização no Instagram. — sinto ela me olhar brevemente.

— Qual é a versão da tua bíblia? A minha é ARA.

— NVI.

— Ah, essa é ótima! E qual o teu versículo favorito?— ela engavetou umas fitas.

— De novo essa pergunta? Já falei é…— tento me lembrar — João 3:16.

— O meu é Salmos 73:25.

Quase perguntei se não era aquele "o Senhor é meu pastor…" mas me calei pois lembrei que esse é o 23.
Depois disso ficamos calados. Ela parece que gosta de mostrar que é crente. Não tem necessidade disso, cara.

— E aí, mocinha!— deu um tapa na minha nuca, me saudando.

— Fala ae, cachorro. — mostrei o dedo do meio pra ele.

Célio e as duas adentraram a salinha que estava com a Clotilde.

— Migo, bora hoje naquela cafeteria da avenida? Uma confraternização só do nosso grupo! — Luzia começa a acariciar o lóbulo da minha orelha.

— Verdade! Odeio ficar olhando pra cara daquele nosso chefe escroto! — Helena começa a gesticular. O que me chamou atenção imediatamente foi seu forte rímel roxo e batom vermelho.

— Junto dele sempre tem aquela vadia da Poliana. Ela é um pé no saco! — Célio reitera o B.O.

— Com licença.— Clotilde pega suas papeladas e despede-se.

— Mulherzinha sem sal, né? — Luzia volta a dizer se referindo a Clotilde.

Por algum motivo, me senti desconfortável ao ouvi-los falando. Talvez seja porque recebi uma forte repreensão da Clotilde.

— Não é à toa que a chamam de "Bruxa do 71", né?!— Helena caçoa.

Após enrolá-los um pouco, eu me despedi e peguei meu metrô.

Recebi uma notificação. "Bro, vem hoje? Vai ter um evento massa com pessoas de fora! Parece que eles vêm do centro-oeste! Vai ser incrível! Te espero hoje!".

Convite para ir à igreja. Será que eu vou? Acho que vai ter comida.

Suspiro.

Ah, tô com preguiça! Vai ser um lenga-lenga até o final e vou ter que responder a várias pessoas de lá.
Algo como "Ou, Natan! Quanto tempo! Por que faltou aos cultos? Tá tudo bem?".

O povo já acha que somos desviados só porque faltamos uns cultos, fala sério! Não preciso ir à igreja para estar com Deus. Ele está em todos os lugares.

A real é que são uns intrometidos. Não fui mais porque são um bando de fofoqueiro. Só tem gente que não presta e depois querem se fazer de santo.
Posso muito bem estar com Deus em casa. Qual é o problema?

Enfim, sexta-feira!

— O que diz mesmo no versículo que a Bruxa do 71 disse…? Salmos 73:25…

Demorei 8 minutos para achar minha Bíblia. E, quando a achei. Ao abrir, me senti estranho. Esqueci por um momento como usá-la.

"Quem mais eu tenho no céu senão a ti?
  Eu te desejo mais que a qualquer coisa na terra"

É o que diz o versículo.

Que estranho. Desejar a Deus mais do que qualquer outra coisa…

—Desejar a Deus? — experimentei a frase oralmente. Ainda me soava estranho.
De repente, me jogo no chão.

— MEU DEUS!! — sinto um forte tremor na espinha. — Como eu pude achar estranho desejar estar com Deus?!

Querer isso não é normal? O que eu estava pensando?!

— Que loucura, Natan! Como pode pensar nisso?!
Foi então que, do nada, ouvi uma voz. Mas, ao mesmo tempo, não a ouvi. De alguma maneira, ouço isso: "Faz muito tempo que tu não andas pensando em nada do que é eterno."

Sem demora, sinto um forte vento árido na minha cara. Os pés começaram a afundar numa densa areia amarelada. O sol começou a ficar forte e ao redor não havia mais casa alguma. Apenas inúmeras dunas de areia até o meu horizonte.

— Eu estou… no deserto!



"No deserto Moisés aprendeu a ser ninguém. Mas também foi no deserto que ele aprendeu que Deus é tudo."
-Hernandes Dias Lopes

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