LAMÚRIAS

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Este quarto que me abriga, é o mesmo que me aprisiona. As paredes demarcam meu ponto de contundência. Não passa de um refúgio fajuto, incapaz de me proteger contra mim mesmo. Não que eu seja perigoso, mas meus pensamentos, devido ao excesso, são. Infestam minha mente com ideias que, dotadas de charlatanismo, dedicam-se à presciência seguindo fluxos vertiginosos e desbaratados. Dessa forma, me torno um carcereiro dos meus próprios pensamentos, incapaz de gritar por socorro, porque aqui, um grito não passa de um ruído infecundo abafado pela reverberação do próprio eco. Não há sequer uma mísera brecha por onde a luz possa entrar para me fazer uma visita. O escuro é um vácuo sem dimensões que me circunda: todas as formas perdem seus traços e arestas para se fundirem ao negrume. Eu me abstraio da matéria do meu próprio corpo para me transpor do mundo sensível em direção às sombras como um espectro. A sensação é de estar num transe: a consciência se flexiona para captar a abstração enquanto a sensibilidade à estímulos físicos é reduzida.

Quando a vida se tornou tão algoz? Talvez nunca tenha se tornado e na verdade, sempre tenha sido. Somos marcados pelo martírio desde a hora do parto. Arranca-se do ventre a vida. Extrai-se do fruto o sumo do suplício. Eis o milagre da procriação, comprobação do poderio de Deus. O recém-nascido esbraveja em busca de acalento. Chora pela primeira vez, mas não pela última. Quando cresce, quer mostrar independência e ostentar brio. Reprime as lágrimas ao máximo, mesmo quando cai e rala os joelhos. Só deixa escapulir algum lacrimejo em momentos de provação, quando faltam forças para mantê-las aprisionadas. Daí esbraveja novamente como uma represa que se rebenta. No final das contas, sempre queremos aquele acalento outra vez.

Só que eu... eu não costumo mais chorar quando estou triste. E não é que não queira, apenas não consigo. Como se fosse um hábito que eu tivesse perdido, ou como se minhas próprias intempéries não fossem o bastante para me comover. Pergunto se Deus já não amaldiçoou a minha alma com apatia. Sou um estático e o Tempo é meu inibidor. As águas rolam, mas não passam por mim. Mesmo imerso no oceano, permaneço intocado pelas correntes fluviais da excitação. Nesses momentos, apenas a arte é capaz de me purificar. A força da expressão subjetiva é a única capaz de me trazer aos joelhos e fazer-me ceder a comiseração. Serei capaz de chorar por mim mesmo de novo ou apenas mobilizado pelos sentimentos dos outros? Se eu dramatizar minha história através da poesia, seria capaz de emocionar alguém? Fazê-lo chorar? Não poderia jamais! Meu orgulho não permitiria, pois é típico dos deprimidos se arriscarem na arte para materializar sua tristeza. Eis o poder das palavras: abrigam, para além das letras, o sentimento. E sou obrigado a concordar que a tristeza é a melhor matéria-prima para a concepção artística. De qualquer forma deixei de consumir arte e me entreguei ao relento. Talvez eu não passe de um frouxo por não acreditar que minhas lamúrias sejam dignas de serem lidas e acreditar que sejam apenas dignas de pena.

Estou no ponto de desejar ter câncer, apenas pelo padecimento. Para que os outros venham se debruçar sobre mim com pena. Saiba que eu não quero sua pena nem comiseração. Quero sua atenção e devoção. Quero ser estóico. Um drama para me enquadrar em uma trama na qual seja eu o protagonista. Porque eu me tornei figurante da minha própria história, da minha própria vida. Portanto, agora quero uma nova. Um novo espetáculo digno de aplausos. Quero me metamorfosear. Ser um ator, para que eu possa interpretar um novo alguém. Alguém melhor, quem sabe; alguém que valha a pena. As possibilidades me encantam. Se me fosse possível, escolheria ser alguém que não eu. E também faria o que me desse na telha. As escolas seriam múltiplas e ilimitadas. Sofreria de câncer mas não morreria por causa dele. O câncer é apenas minha forma de redenção. Talvez ainda optasse por sucumbir perante a doença até o último minuto, desde que fosse digno. E atribuísse ao meu personagem um legado fidedigno. Legado de heroísmo, coragem e resiliência. Algo diferente do meu estado atual. A morte me consome lentamente. Não a morte morte, mas a sua ideia. Não há honra na rendição. Mas também não há outra escolha pra mim. Por isso suplico por uma narrativa, porque me empurraria para uma glória pré-estipulada. A glória, para mim, não é uma garantia, mas ainda assim espero por ela. Pra mim, esperar é uma forma injusta de se viver. O Tempo sempre irá nos contrapor. Definhe enquanto espera, ou viva o bastante para ter suas expectativas submergidas. O que se espera quando não há expectativa? Apenas pelo Tempo passar? Assim, ele apenas se arrastará. E aqui, no meu mausoléu, imerso no escuro, eu espero. O Tempo para mim é uma lesma que malogra o deflúvio. A lentidão aguça a percepção. E na minha percepção, a vida não é curta. A vida é negligenciada. E também estratificada, ao ser elencada em etapas. Não se chega ao cume da montanha sem antes tê-la escalado. O percalço é demorado. A conquista é sem graça. O que fazer depois que já se possui? Como uma criança que cansa do brinquedo e faz birra por um novo. O percalço nos condiciona a partir rumo ao objetivo. Depois de alcançado, partimos rumo a um novo em um ciclo contínuo que não tem fim. Mas sem um objetivo, quem eu sou?

Quem eu sou?

Sem um motivo para ser, o que vou me tornar? Eu espero. Pelo quê? Por um pretexto. Por uma condição. E enquanto espero, penso. Mas os meus pensamentos são embaralhados, eles costumam se sobrepor porque são muitos. Eu penso em excesso, e a falta de uma linha tênue que organize e guie o raciocínio faz com que percam as ideias sobrepostas percam a coerência. Mas... o que é pior: nutrir muitos pensamentos ou nutrir nenhum?

Há momentos... eu admito! Há momentos em que parece que eu cheguei no meu limite. E nesses momentos me questiono por quanto tempo mais irei suportar tanta tristeza. Isso é viver ou existir? É contentar-se. E eu não me contento. Fraquejo. Me sinto um covarde por me entregar a obstrução, mas faço isso apenas porque a tristeza é o único sentimento intenso e real o bastante capaz de me fazer crer que ainda estou vivo. E para falar a verdade, não sei quem eu seria se não fosse triste. Há muito abri mão de ser uma pessoa para me tornar uma ideia subjetiva acoplada a um sentimento. Não sou ninguém, sou apenas uma abstração. Não sou mais um indivíduo, me tornei a fusão de toda uma nação. Sou uma situação, ou se preferir, uma etapa que, quando alcançada, muitos estagnam.

E de que vale a felicidade frívola? Ela apenas manobra o Tempo e nos manipula. Nos torna inconscientes a respeito da passagem do Tempo. A tristeza também me concedeu uma percepção mais aguçada a respeito da própria existência. E sobretudo do instante. Percebo agora como escolhemos arbitrariamente nos deixar enganar pelo alívio de um instante. Uma gota d'água não sacia o sedento, apenas o corteja com o saudosismo do prazer. Não podemos capturar o instante, nos frustramos diante da impotência de não poder perpetuá-lo. Mas se não podemos perpetuá-lo, não podemos no mínimo reprisá-lo? A sede por prazer é uma puta que toma as cordas e transforma nossas mentes em marionetes. Coordena nossas mãos em movimentos frenéticos, que se repetem e são capazes de tirar o fôlego, obedecendo a um ritmo. Lentamente os movimentos manuais vão se intensificando de acordo com a percussão da sinfonia que se encaminha para o seu momento de tensão. Tudo orquestrado para alcançar aquele instante, mesmo sem saber que todo esse cenário é uma forma de apelo ao lúdico. E quando finalmente se alcança o ápice, e há a permissão para se deixar consumir pela intensidade do orgasmo, quando a respiração ofega e a omoplata relaxa para liberar toda a tensão, o arrebatamento do instante passa e segue-se o vazio. O sêmen escorre e a mente se abre como uma leque para reconhecer a ludibriação. Toda a mágica da busca pelo instante se esvai para abrir espaço para o sentimento de culpa. Depois pode até vir a vontade de reprisar o momento de prazer mais uma vez, transformando esta situação em outro ciclo vicioso que transforma momentos de prazer em momentos de arrependimento. Assim como a arte, a masturbação também deixou de me entreter. O esforço pela catarse de um instante se tornou uma busca sem sentido, se tornou cansativo buscar por algo que nunca se encontra.

E é assim com a felicidade. Independentemente de quanto tempo ela dure, só será percebida sua falta quando a ausência dela emplacar. Porque quando você está feliz, você se torna ingênuo. O valor da alegria só é realmente sentido quando deixa de vivê-la para apenas rememorá-la.

Vazio.

É preciso paciência. Mas não paciência para continuar esperando, mas para resistir a opressão do Tempo. Minha ânsia pelo imediatismo me faz simular qualquer forma de mudança a uma batida de carro: um impacto que pode ser ocasionado em segundos. Quanto mais se espera, mas o tempo se estende em um continuum infinito. O infinito é um vácuo desencadeado pela espera: há o início mas não há presságios do fim. A espera é um martírio. Como prever o porvir? É possível pressentir um milagre? O Tempo é um inimigo que não se tem como ganhar.

Talvez, afinal de contas, o meu dilema não seja contra o Tempo, mas contra a incerteza. Se espera por alguém que você não tem certeza se vem? Eu sei que interveio com muitas interrogações, mas questionar é a forma de me manter enraizado nas vísceras da lucidez. Não sei de nada, sou apenas um claustrofóbico. A impaciência é meu tormento. Mesmo assim, continuo a esperar. Não por escolha, tampouco por comodismo. Porque é minha incumbência. E enquanto espero, continuo a ordenhar rochas.

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