Prefácio

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O café a minha frente exala uma fumaça branca familiar e cheirosa.

O dia está no seu fim e os raios preguiçosos de sol iluminam algumas cadeiras do café pitoresco plantado naquela rua movimentada. Olho para o relógio gigante a alguns metros de mim, e são 17h03, temperatura 26 Cº.

Começa a soprar uma brisa que solta o coque malfeito que eu fiz.

Percebo os olhares estranhos que as pessoas me lançam, e imagino que minha aparência não é das melhores, embora esteja vestindo minha melhor versão de "terninho" social: uma calça reta preta de alfaiataria, uma camisa blue navy, com alguns botões abertos, e uma mancha de catchup da coxinha que eu tinha comido antes, sobre minha bolsa estava o meu velho blazer preto com um lenço colorido que eu costumava usar para completar o look "me dê um emprego por favor, sou competente, eu juro!"

Meu cabelo era castanho claro, e era daqueles lisos que nada segura, e que de vez em quando parece que a vaca lambeu, e embora de vez em quando me frustrasse na maioria dos dias eu gostava muito, por ser prático e fácil de arrumar. Uma breve olhada na câmara do celular me confirmou meu estado: a maquiagem eu já tinha destruído, em uma das muitas vezes em que cocei os olhos, e os óculos estavam sujos.

Limpei rapidamente as lentes, e quando coloquei novamente, reparei na figura sentada a umas 4 mesas a minha direita. Juro que se eu tivesse num dorama, ia começar a tocar a música de fundo, e a filmagem ia rodar em câmara lenta, porque justo nessa hora uns raios de sol iluminaram o perfil do cara, e tudo pareceu meio "mágico".

Tanto que eu rapidamente, virei as páginas do meu bloco de desenhos e comecei a rascunhar o que estava vendo. Ele parecia aqueles gatos que se espreguiçam e se deitam ao sol, o rosto levantado, os olhos puxados fechados, o maxilar tenso e os lábios grossos fechados. Algo o incomodava, pois os ossos do maxilar se retesavam e soltavam, e embora o cabelo estivesse penteado para trás, as vezes em que a brisa ousou remexer em alguns fios, ele rapidamente os ajeitou com impaciência.

Mesmo naquela distância eu podia ouvir leves bufadas.

Continuei desenhando seus traços, entretida demais nas linhas harmônicas do seu rosto, e não percebi que sua sobrancelha começara a tremer.

Eu tinha essa habilidade de me perder no que estava pensando e fazendo, como se um buraco negro aparecesse e me engolisse, me deixando alheia a tudo, e naquele momento ele era o meu foco de atenção. Quando terminar de desenhar suas sobrancelhas, escutei um pigarrear alto.

Foi quando me concentrei de fato no sujeito:

- O que foi? Gostou? Quer comprar? - ele indagou em uma voz grave. Pisquei os olhos sem graça, e senti minhas bochechas ficarem vermelhas. Hesitei entre levantar e explicar, e pedir desculpas, e foi tempo suficiente para ele me olhar de cima a baixo, pigarrear novamente, se levantar e sair.

Saiu tão abruptamente que quase levou com ele meia dúzia de cadeiras.

Ele era muito alto e parecia uma geladeira duplex.

- Ahh... Desc- sou cortada pelo vento mais forte, e quando me viro novamente para falar com ele, o bendito já tinha desaparecido.

Contrariada, desenho um par de chifres na sua cabeça e risco seus olhos.

Meu dia já tinha sido uma bosta, com uma entrevistadora beeeeeeeeeeeeeeeem da ruim me questionando se eu tinha problemas de trabalhar com outras mulheres, "por que já sabe né, quando os ciclos menstruais coincidem, ninguém aguenta TPM de um monte de mulher, e aí uma ia querer puxar os cabelos da outra".

Só de lembrar eu queria revirar os olhos nas minhas órbitas umas três vezes.

Isso tudo para trabalhar num setor de design de uma construtora que não tinha nem 2 anos de tempo de abertura, e que o quadro de colaboradores se resumia a ela, mais duas mulheres e o dono.

Tem horas que a gente tem que ouvir cada coisa, que só por Deus.

Depois da entrevista, me arrastei para aquele café e tinha puxado meu bloco de desenho só para me desligar daquela experiência de merda, e criar histórias interessantes na minha cabeça, que na maioria das vezes eram muito melhores que a minha realidade.

Eis que me deparo com o senhor Mercadoria Ambulante, e agora até isso tinha estragado. Risco novamente seu rosto e escrevo do lado: não compraria nem no brechó, me levanto e vou embora, ele era só mais um de meus desenhos, entre muitos que rabisquei, das milhares de pessoas que já vi, e que provavelmente nunca mais veria.

Corta para: dois dias depois, estou à frente dele em uma sala gigantesca, fazendo uma entrevista para uma posição maravilhosa que pode literalmente mudar minhas condições atuais de vida, e a única coisa que ressoa na minha cabeça é:

- Gostou? Quer Comprar?

Gostou? Quer Comprar?Onde histórias criam vida. Descubra agora