imaginação.

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Cantigas de pássaros roucos ecoavam pelas paredes de tom rococó.

Havia um sabor silencioso e incompreensível naquele quarto de hospital. Internada, Alice acordava e dormia como a própria rainha dos benzodiazepínicos. Já havia uma semana que estava naquele local, com os pulsos furados e laçados a cabos e cabos de soro.

Por ser jovem, o seu quadro evoluiu muito bem: não sentia mais as fortes dores, os arroxeados agora pincelavam aquarelas de vinho tinto avermelhado, e o inchaço no rosto se reduziu a leves morros. Por esses e outros motivos, tinha uma possibilidade dela receber alta daqui uns dias.

Porém, o cansaço deplorável amigou com o mormaço insuportável, envolveu com o inodoro e pesteou um insípido silencioso e nada compreensível: era o tédio arranhando e devorando o discernimento do nada.

A morfina lhe preparava para uma ceia com o Morfeu. E constantemente, quase como em uma Odisseia kafkiana, a menina sonhava que era uma barata.

Em um de seus devaneios mimados, sonhou com um gatinho preto brincando com uma barata verde. Os olhos esmeraldas do felino rimavam com a cascuda baratinha. E brincavam, rolavam, gargalhavam debaixo do balanço arco-íris próximo ao pé de pinha.

Mas, por um descuido malino, a patinha musculosa do gato arrancou o par de asas da barata. Mas ela, com uma dor da peste, não se importou com aquela façanha. Apenas ouviu o sincero pedido de desculpas do gato e continuou aquele sassaricar retado e baderneiro.

Mais tarde, o gato, com suas unhas-pexeiras, arrancou, com uma rapidez leprosa, as duas antenas do inseto. A barata não mais sentia o sabor amargo do vento, nem mesmo o solar fabuloso. O gato novamente pediu desculpas para a barata e continuou a brincar.

Quase à noite, o gato, com seus dentes mordazes, arrancou os três pares de patas da baratinha. A bichinha deixou de sentir a terra e o calor da calefação do chão. Sentia dor, mas as desculpas do gato acalentavam aquele sofrimento. Era, com certeza, um aprazível amigo!

Já de madrugada, o gato, com sua língua macia, engoliu a baratinha verde. A barata beijou a úvula, escorregou pela garganta úmida e sorriu para os restos de peixe ali presentes no estômago do bichano.

Mas algo esplêndido aconteceu com o inseto, quase como uma redenção divina aos acidentes que lhe haviam acontecido: A carniça de peixe apodreceu os miolos da barata, o que a fez sentir o odor do purificar da carne; o ácido estomacal lhe trouxe um calor e um rubor aconchegante nas costas; e o borbulhar e as bolhas de azia a faziam levitar pelas entranhas. Havia sentido e aprazido, quase magicamente, aquilo que havia recentemente perdido.

Aquelas breves memórias foram as melhores desculpas que seu amigo gato havia proferido.
E, do lado de fora, o inseto ouvia um ronronar doce, cômico e terno, que dizia: "Como deve ser agradável ter um amigo quase onça!"

E a bichinha desceu pelas vísceras feliz à beça, caindo no colo da morte amigável.

Despertando com a queda da barata, Alice, toda risonha, ria e sonhava em seus entressonhos. Acordou com um sorriso frágil.

Já era hora de almoçar. O sol criava um escândalo lá fora ao soar do meio-dia.

Uma enfermeira loira entrou no quarto. Carregava consigo um carrinho de mão com uma dezena de pratos coloridos ou apáticos: eram os almoços dos pacientes ali internados.

A menina admirava os pratos e cozinhava pensamentos sobre qual prato devoraria. Em uma olhadela aos seus vizinhos de maca, notou o banquete: Os pratos coloridos tinham pedaços de cenoura e batata cozidos ao vapor, além de um pedaço de frango grelhado, arroz branco empapado e feijão fradinho. Tinham cheiro de lembrança e de infância; talvez dos dois; ou melhor fabulando, tinham cheiro de lembranças de uma vívida infância vivida numa lambança roça de alguma tia-avó cozinheira. A especificidade recolhia dos corações recordações de algo sepultado pelo tédio cotidiano. E quem comia daquele prato bocejava olhares de afeto.

inócua gentilOnde histórias criam vida. Descubra agora