Aysha calcorreava pela rua saltitando, com seu belo girassol em mãos irradiando uma alegria jamais experimentada. Nunca antes havia recebido uma flor, aquela aclaridade que estampava em seu rosto era evidente para todos que cruzavam seu caminho enquanto atravessava as ruas.
No entanto, como bem sabemos, a vida nem sempre é um mar de rosas.***
Caminhava distraidamente por uma erma e deserta viela. O sol que a pouco iluminava as copas das árvores e as cobertas das casas, não estava presente naquela via despavimentada. A garota mal importou-se por onde andava, estava aclare e jubilante, também havia regalias ao andar por esta rua, pois chegaria em casa para as festividades junto com sua mãe rapidamente.
Dando-se como um sobressalto, de repente, ouviu-se um calcar de passos pesados atrás de si. Era a sombra imponente de um homem alto e robusto que a seguia, com passos atravessados, e chamando atenção.
Ela agora em alerta, apressou o passo de seus pequenos pés, ligeiramente adentrando numa cavernosa ruela infestada de um odor desagradável e sombrio, talvez até de restos mortais.
Seu estômago embrulhou, quando se viu em agruras. Que num piscar de olhos, duas figuras sombrias surgiram como espectros ao seu encalço. Ela estava cercada.
Estava cercada por espectros que trajavam vestes negras, e ocultavam seus rostos atrás de máscaras de bronze bruto, cada uma ostentando uma pedra preciosa incrustada.
— Perdida, garotinha? — inquiriu um deles, sua máscara era ornamentada com ametistas.
Ayla inspirou silenciosamente, puxando o ar devagar e devagar, para manter sua coragem inabalada — tal como Anaylla sempre mantinha — ela permaneceu em silêncio, encarando fixamente a máscara daquilo sem deixar transparecer qualquer sinal de medo.
— A menininha fala? — provocou ele em um tom que carregava uma ponta de malícia, inclinando-se ainda mais na direção da jovem menina, como se buscasse intimidá-la com sua presença imponente.
— Oras, estás a assustar a garotinha com essa face horrenda, Oskar — debochou um mascarado adornado com rubis, rindo do outro. Então o nome daquela coisa era Oskar.
O mesmo contrariado, amarrou a cara começando a xingar enquanto o companheiro ainda prosseguia em seu riso de zombaria.
O ar foi sugado com uma tensão palpável de uma tempestade prestes a desabar, foi absorvido pela voz áspera e implacável de um homem que atravessou o espaço como uma lâmina bem afiada, cortando qualquer vestígio de frivolidade.
— Qual é o acontecimento tão hilário, para vós, gozar de tanto divertimento, Ronelyn? — A voz não pedia uma resposta; ela exigia. Era uma sentença proferida antes que Oskar pudesse sequer articular uma réplica ao insolente e abestado Ronelyn.
Suas fisionomias instantaneamente endureceram, temerosas, então prontamente abriram caminho para a figura imponente que se aproximava com a gravidade de um rei, ou talvez algo ainda mais temível.
Aysha tão jovem e aparentemente frágil, sentiu um calafrio percorrer sua espinha ao perceber que o homem que a seguia com olhos penetrantes agora estava diante dela, sua presença monumental com a sua face oculta por uma máscara de ouro, ricamente adornada com esmeraldas, que exibia padrões de arabescos europeus. Ela permitia que apenas a mandíbula, o maxilar e seus olhos verdes escuros inebriantes ficassem à mostra.
A menina baixou os olhos rapidamente, encarando seus próprios pés tentando encontrar algum ponto de fuga naquele chão frio e sujo, não revelando nenhum sinal de medo para o que quer que sejam aquelas pessoas. O mundo ao seu redor tornou-se um borrão indistinto, e em sua mente ecoava a voz de Troplin, como um farol em meio à tempestade: "O medo é apenas uma sombra fugidia, Anaylla." As palavras, ditas à princesa em tempos de crise, agora eram seu único escudo.
Ela não cederia, não demonstraria nenhum foco de medo.
— Nenhum acontecimento importante, padrinh… quer dizer, senhor — gaguejou o de ametistas, ou mesmo Ronelyn, ao seu superior depois do mesmo se acomodar frente a frente à bela garota cor de neve.
Ele grunhiu baixinho, e então de relance assentiu com a cabeça, mantendo os olhos fixos em seu subordinado. A intensidade daquele olhar parecia capaz de perfurar a alma, uma advertência silenciosa, mas carregada de poder. Seus ombros permaneciam erguidos, a postura rígida e impecável, exalando a dignidade inata de um líder nascido para comandar.
Cada linha de seu corpo transmitia a mensagem clara de que ele não tolerava erros ou sequer deslizes e estava preparado para repreender o menor deslize com a severidade de um juiz implacável. Melhor que isso, um rei.
Então, com um olhar penetrante de seus olhos verdes, ele finalmente direcionou sua atenção para a garota diante dele.
— Olá, amorzinho. — ele disse, as palavras escorrendo como veneno doce de seus lábios a avaliando de cima a baixo, de um lado para o outro, como um estrategista avaliando sua próxima jogada em um tabuleiro de xadrez. — Estás perdida? Por que andas sozinha por esta propriedade? Pode ser perigoso.
Não seria perigoso se eu não tivesse visto o senhor! Aysha pensava em dizer isso quando o encarou
— Como chamas? — ele insistiu agora mais próximo com seus olhos cravados na delicadeza daquela menina que, embora tão jovem, irradiava uma força que ele não esperava. A esbelteza de Aysha, o contraste de sua pele pálida com o brilho de seus olhos claros, fascinava-o. Ela era mais do que uma criança; havia algo nela, uma bravura escondida, algo que o atraía como uma mariposa ao fogo.
— Minha mãe me ensinou que não devo falar com estranhos — e quando ela respondeu com aquela frieza, cerrando o punho que segurava seu girassol com determinação como se estivesse protegendo seu valioso tesouro, ele ficou mais fascinado ainda, então se ajoelhou para ficar de sua altura. Mal sabia ele que naquele momento ela evocou em si a bravura de Amaya, a heroína de seu livro favorito, que defendia com lealdade seu castelo de pedra-da-lua, além de sempre defender a si mesma.
— Oh, que falta de educação a minha, não é mesmo? — reconheceu o de cabeleiras loiro-acastanhadas, deixando escapar uma risada entre dentes carregada de uma ironia que reverberou pelo ambiente. Seus serviçais, como que obedecendo a uma coreografia ensaiada, ecoaram o riso com precisão, mas o silêncio caiu rapidamente quando ele lançou-os um olhar fulminante, petrificando-os como se uma magia antiga os tivesse enfeitiçado.
Em segundos, o líder já havia suavizado a expressão ao voltar sua atenção para ela, que novamente mantinha o olhar fixo no chão.
— Ora, realmente perdoe-me. Me chamo Enon. Enon Evla aos seus serviços, princesinha. — A reverência que ele fez era um teatro de falsa cortesia, e o sorriso que lhe seguiu era distorcido, uma máscara para intenções sombrias. Percebendo a falta de emoção além de frieza nos olhos da garotinha ao olhá- lo, ele abaixou-se para ficar à altura de seu rosto, como se tentasse decifrar os segredos ocultos por trás daquela expressão imperturbável.
Enon se aproximou ainda mais, agora ajoelhado diante dela, os olhos buscando em seu rosto delicado algum traço de vulnerabilidade. Onde estava o medo daquela criança? Ele se perguntava, perplexo.
Ela não parecia ter mais de cinco anos, e ainda assim, era imperturbável. A maioria das crianças de sua idade já estaria chorando, implorando por misericórdia para que não as levassem. Sua máscara o ajudava a causar medo muito bem, tal qual se realizava muito bem o papel de bicho papão da máscara de ouro. Aquela criança era um troféu de diamantes, assim como pareciam seus olhos. E ele a ergueria como um.
— Bem, então agora não sou mais um estranho, estou errado?
— És desprovido de sabedoria? Ainda és um estranho para mim! — exasperou ela, ríspida e mal educada. Como se toda a disciplina que possuía na vida tivesse se esvaído e ido parar no vale tenebroso da morte. Os homens de Evla ao ouvi-la não contiveram as gargalhadas, pareciam tamanho abobados.
— Ora, como ousas? Sua.. — tentou redarguir, sua ira subindo pela garganta pela insolência da menina, mas teve que mudar a atenção para os seus homens e rugir, um grunhido de raiva gutural e macabra que o fazia certamente parecer um monstro. O bicho papão da máscara de ouro, de fato.
— Pois bem — ele limpa a garganta em chamas para acalmá-las, então novamente se volta para ela, agora esboçando um sorriso em seus lábios carnudos.
— Creio que irás ficar bastante tempo conosco para nos conhecermos melhor, pequenina.
Ela recuou um passo, seus olhos arregalaram.
Ele riu com aquele vislumbre de medo no olhar dela. O som da curta risada era perversa e distorcida em sadismo. Um som que parecia pertencer a um ser indecoroso, desprovido de humanidade e clemência.
A facção de seus servos aparvalhados riram também, acompanhando sua mesma risada de despotismo enquanto ele se levantava. Anaylla o teria golpeado, bem ali, um chute enquanto estava vulnerável. Mas sua coragem se perdeu no mar de medo que a envolvia. Ela ficou imóvel, a coragem sendo rapidamente substituída por um frio paralisante.
— Rapazes — Enon ordenou com um aceno de cabeça, um sorriso ladino se espalhando em seus lábios como uma promessa não dita. Era o sinal que os homens aguardavam.
Eles avançaram sem hesitar, cumprindo a vontade de seu mestre como máquinas programadas para obedecer. Oskar foi o primeiro a agir, movendo-se com uma velocidade implacável, agarrando Aysha antes que ela pudesse sequer tentar escapar. Seus braços a prenderam, esmagando qualquer tentativa de fuga, suas mãos firmes segurando-a com uma força calculada para conter, mas não machucar.
— Solte-me! — Aysha gritou, sua voz carregada de raiva crescente, enquanto lutava com todas as suas forças contra o aperto que a mantinha cativa. Cada movimento, cada tentativa de se libertar, era uma manifestação de sua vontade indomável, mas Oskar estava preparado. Ele a segurou mais forte contra si, murmurando com uma calma perturbadora:
— Calminha, raio de sol — Suas palavras, impregnadas de um sorriso que não alcançava seus olhos, foram como um veneno doce, enganosamente tranquilizador. — A soltarei assim que formos para sua nova… Casa. — Mas havia uma hesitação em sua voz, uma leve falha que traía uma incerteza, um fio de humanidade talvez? Será mesmo?
Enon, observando a cena com um deleite quase infantil, soltou outra risada, menor, mas igualmente perversa. Ele estava se divertindo com o acontecimento diante de seus olhos, com sua satisfação crescendo ainda ao ver Ronelyn emergir da ruela sinuosa poucos segundos depois, trazendo consigo uma saca e uma mordaça. A visão daqueles objetos – símbolos de subjugação e silêncio – fez o coração de Aysha afundar em seu peito, mas ao mesmo tempo, algo dentro dela começou a ferver, um sentimento que ela não sabia nomear, mas que queimava com a intensidade de mil sóis. Ela sabia que precisava se libertar, e mais do que isso, precisava lutar.
— Não! — O grito de Aysha reverberou pelo espaço, carregado de uma fúria primal que parecia pequena demais para uma menina tão jovem. Ela se debatia freneticamente no aperto de Oskar, a respiração acelerada, o coração batendo como um tambor de guerra em seu peito enquanto Ronelyn se aproximava. Cada debatido dela era um desafio, um grito silencioso de que ela não se renderia sem lutar.
No meio daquele caos interno, ela se lembrou de algo que Analla havia feito: um ato simples, mas poderoso, que lhe dera a vantagem contra um adversário maior e mais forte, afinal, tamanho não era documento.
Com uma determinação feroz, Aysha fincou seus pequenos e incisivos dentes no braço de Oskar, afundando-os com toda a força que conseguia reunir. A dor que ela causou foi como uma explosão súbita de agonia, forçando um grito involuntário a escapar dos lábios de Oskar. O aperto que a mantinha cativa se afrouxou, e, num instante de triunfo, ela caiu ao chão, livre pela primeira vez daquela prisão de carne e ossos.
Mas sua liberdade recém-conquistada foi curta. Em um piscar de olhos, Ronelyn lançou-se em sua direção pronto para capturá-la e forçá-la para dentro do alforje que trazia consigo, mas um alerta reluzia em seus olhos por trás da máscara.
Parecia dizer algo, mas ele se movia como um caçador prestes a capturar sua presa, seus passos rápidos e precisos, como se soubesse que não poderia falhar.
Anaylla cortara a corda de suas mãos com o próprio colar afiado para se salvar. O colar! Aquela lembrança rapidamente explodiu na mente de Aysha como um relâmpago de inspiração. Seus olhos encontraram o pingente de girassol que balançava em seu pescoço, um adorno tão delicado quanto a luz do sol, mas que naquele momento se tornava sua única arma.
E sem hesitar, ela pegou o pingente, seus dedos trêmulos, mas firmes, encontrando a borda afiada que sempre estivera ali. E com uma precisão surpreendente, lançou-o na direção de Ronelyn. O pingente voou, um brilho dourado cortando o ar, antes de ela cravar na perna do homem com uma força inesperada. Não seria fraca. Jamais. O espírito de Anaylla vivia nela, impulsionando-a a resistir, a lutar com todas as suas forças. Mesmo diante de forças que pareciam insuperáveis, ela se recusava a ceder. Porque no fundo de sua alma, Aysha sabia que a bravura não era apenas uma qualidade; era a essência do que a mantinha viva naquele mundo sombrio e perigoso.
Como um boneco desarticulado, Ronelyn caiu ao chão, contorcendo-se em agonia, sua dignidade se despedaçando junto com seus gritos. Parecia uma criança dramática, choramingando pela dor que ele sendo um soldado treinado, deveria suportar sem pestanejar. Essa foi a brecha que Aysha precisava, então ela nem perdeu tempo, agarrou seu girassol caído ao chão e lançou-se em uma corrida desesperada, o coração martelando no peito como um tambor descontrolado.
— O quê? Peguem-na agora! Seus parvos inúteis! — A voz de Enon cortou o ar como um chicote, cada palavra transbordando fúria. Sua raiva era um fogo que queimava não apenas por causa da falha de seus homens, mas também pelo orgulho ferido de ver uma criança de cinco anos escapar de suas garras. Estes, saíram da ruela rapidamente para alcançar a menina, mas Aysha já estava longe, seus pequenos pés martelando o chão irregular enquanto ela corria, corria como se sua vida dependesse disso — e dependia.
— Ah eu vou fazê-la de minha escrava por cinquenta anos por causa disso! — Oskar cuspiu enquanto corria, a ardência da mordida alimentando sua fúria. Ele estava furioso, mas no fundo sabia que aquela dor era insignificante comparada às torturas que os aguardavam caso falhassem. A visão da garota desaparecendo na curva apenas inflamava sua frustração. Até pensara em soltá-la ali deixá-la escapar, mas ela o mordera, seu ego estava ferido.
— Espere, Osk — A voz de Ronelyn, firme, mas ainda tingida de compaixão, fez Oskar parar. Tirando a máscara, ele se posicionou na frente do amigo, bloqueando seu caminho deixando que ele olhasse em seus olhos verdes acinzentados.
— O que que é, seu tolo? A garota está a fugir! — Oskar estava esbaforido, sua frustração borbulhava como lava prestes a explodir ao ver Aysha desaparecer na curva, a mesma tão perto de ser capturada.
— Qual é, está falando sério? Ela é só uma criança que estava no lugar errado na hora errada, Oskar. — Ele falou, sua expressão era de compreensão e cansaço. — Vamos voltar, irmão. — A suavidade em sua voz era quase desconcertante, como se ele tentasse apelar para a humanidade que ainda restava em Oskar.
Por um breve momento, Oskar o achou patético, um bastardo sentimental por poupar uma garota cuja captura era crucial para evitar punições severas. Mas, apesar de sua raiva momentânea e frustração, ele assentiu depois de revirar os olhos. Ambos então sabiam que voltariam de mãos vazias, e o preço seria pago em dor, talvez desfiguração, mas a escolha já estava feita. Sem outra palavra, eles regressaram a Enon, conscientes de seu destino.Aysha continuava a correr, seus pequenos pés batendo contra o chão com a força do desespero. Ela olhava para trás frequentemente, a aflição crescendo a cada segundo, temendo que não estivesse correndo rápido o suficiente, que a qualquer momento eles a pegariam. Eram adultos, e adultos sempre eram mais rápidos, mais fortes. Porque alguns adultos tendiam a ser assim? Tão cruéis.
Conseguirás escapar disto! Ela repetia para si mesma, sua mente girando em torno do capítulo 10 de sua história favorita, buscando coragem nas palavras que conhecia tão bem.
"Anaylla corria pelos arbustos e árvores, se abaixando e curvando-se em obstáculos. O som dos galhos quebrando sob seus pés e o vento cortando seu rosto não desviavam seu foco. Ela corria em disparada para casa, rumo à segurança de seu lar, ao imponente castelo de pedra-da-lua, onde seu destino como guerreira a aguardava.
Era uma guerreira, nasceu para ser.
Anaylla abraçava sua vocação com fervor. A necessidade de lutar não era apenas uma questão de sobrevivência pessoal, mas uma missão sagrada para proteger, então ela o faria. Lutaria por si mesma e pelas pessoas inocentes que também eram levadas pelo malvado rei de Brucksburg. Lutaria pelo seu reino. Para assim ver a harmonia pairar como o sol ofuscante no mundo de trevas, ela correu para casa, adentrando na curva de duas árvores entrelaçadas uma à outra…"
As palavras de seu livro favorito ressoavam em sua mente, guiando seus passos, enchendo-a de uma força que ela não sabia que possuía. Aquela força que não a impulsionava apenas para escapar, mas para encontrar seu próprio castelo de pedra-da-lua, um lugar seguro onde o mal não poderia alcançá-la.
Aysha adentrou numa outra curva sinuosa, o cenário ao redor começando a se repetir em sua mente como um ciclo sem fim. Mas antes que pudesse entender o que estava acontecendo, colidiu violentamente com uma superfície rígida.
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A Pedra da lua e o Girassol (DEGUSTAÇÃO)
Historical Fiction"Nasceu ao verão uma linda menina com uma maldição... Para tão nova conhecer o amor e perdê-lo. Quão sofrimento causou a guerra que se alastrou?" Em meio ao fulgor das joias e o segredo sombrio do tráfico em Alvdon, uma garota ansiava por felicidad...