Capítulo Único

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"Mas à última pergunta Selig respondeu:

— Provavelmente ele fugiu para o país além das trevas, aonde nenhuma pessoa vai e nenhum bicho se perde, onde o céu é de cobre e a terra é de ferro e onde, debaixo de cogumelos petrificados e em tocas abandonadas pelas marmotas, habitam os poderes do mal."

Isaac B. Singer, Naftali, o contador de histórias e seu cavalo Sus




Japão

1965

O garoto, segurando o chifre quebrado na testa, estava de pé, chorando sozinho em um cemitério de corpos frescos e destroçados. O sangue viscoso e quente escorria pelos seus pés como se fosse a poça de água de uma forte chuva, e esquentava o local entre seus dedos como se fosse a própria pele de sua mãe contra a sua em um abraço caloroso.

Ele se abaixou afundando os joelhos magros no chão e, ainda chorando, aos soluços e engasgos, se misturou mais ao sangue, enfiando a mão entre os destroços misturados às entranhas de sua mãe no chão, tentando encaixar a massa encefálica espalhada, dentro do crânio aberto dela.

O garoto estava chamando pela mulher mergulhada no mar vermelho, apertando o cérebro em pedaços e misturados a detritos e concreto dentro da cabeça do cadáver.

Ele entendia que ela estava morta, mas não queria pensar nisso. Não queria pensar que estava sozinho.

Limpou os olhos pensando no que faria a seguir. Ele queria voltar para casa, queria voltar para sua casa quente, confortável e intraterrena que estava no interior daquela terra gelada do exterior, queria escapar daquele local cheio de pessoas de pele lisa e ruins que mataram sua mãe.

Ele gemeu apertando o chifre esquerdo que se quebrou na base quando sua mãe tentou protegê-lo da bomba lançada no abrigo onde eles estavam. Ele também sangrava, estava sentindo tanta dor, mas se ficasse ali, morreria assim como sua mãe morreu... o que não era uma ideia ruim. Quando se viu, já estava deitado no meio do sangue e das entranhas de sua mãe que se espalharam saindo da cabeça e do abdome, se encolhendo debaixo do braço dela e chorando baixinho ao tempo em que ouvia o silêncio do vento zunir.

Ele olhou para o rosto dela, completamente desfigurado com carne, pele e olhos pendurados, mas ainda era sua mãe. Ainda que o sangue escuro dela cobrisse a pele vermelha e tivesse o cheiro forte de ferro, ele ainda podia sentir o leve odor de azeite que ela tinha, ela ainda era sua mãe. O cabelo dela ainda era escuro como carvão, os chifres dela eram majestosos, saindo da testa e se retorcendo para trás da cabeça. Ainda era sua mãe.

Ele tentou chamá-la, tentou dizer entre soluços a palavra "Mãe".

Mas aquilo era só um cadáver entre muitos.

Ela não o responderia. Não o protegeria e não o amaria. Mikail estava completamente sozinho em uma terra estranha.

O pequeno garoto tentou pensar em quando aquilo havia acontecido, em como chegaram àquele ponto. Ele se lembrava de quando o céu simplesmente se abriu e o projetou para fora junto com a maioria das pessoas que conhecia. O garoto então percebeu que estava vivendo debaixo de uma terra que abrigava pessoas de peles de cores diferentes, pessoas que não tinham chifres e nem cauda, pessoas que tinham olhos com pupilas redondas.

Quando aquelas pessoas os viram pela primeira vez, imediatamente o massacre começou. Ninguém entendia bem o que cada lado falava, mas armas e sangue eram uma linguagem universal. Mikail lembrou que as pessoas de pele fina e lisa os chamavam de demônios com um olhar de nojo, como se estivessem se referindo a insetos.

Mikail não se sentia nojento. Aquelas pessoas que eram monstruosas. Sua mãe nunca fez nada de mal para ninguém, eles só queriam voltar para uma abertura no chão que os levassem novamente para o seu país intraterreno, já que o local pelo qual haviam saído, simplesmente se fechou sem nenhuma explicação.

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