Capítulo 1

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Iori chega com a cara tão fechada que interrompo no meio a gracinha que ia falar. Joga a bolsa sobre a mesa, se ajeita na cadeira de qualquer jeito e liga o computador enquanto observo discretamente (ou não tão discretamente assim) seu comportamento tão fora do padrão.

É difícil conter a vontade de dar risada com o quanto ela tenta me ignorar, o que só a deixa mais irritada e sendo honesto, uma gracinha. Desconfio que se pudesse o teclado estaria gritando devido a brutalidade com a qual ela digita e estou fazendo todo o esforço do mundo para evitar gargalhar.

Nossa convivência é conturbada e reconheço que a culpa é toda minha: Iori é uma mulher séria, profissional, madura e eu... sou eu, um adulto que se recusou a crescer além da esfera profissional.

A questão é que estou bem com isso e dispenso todo o excesso de responsabilidade, a dependência mascarada em relacionamentos e o peso que maioria das pessoas coloca voluntariamente sobre os ombros. Prefiro viver minha vida da forma mais leve possível.

Carpe diem.

Finalmente ela cansa de me ignorar: para o que está fazendo e me olha por cima do monitor, a expressão tão mortal (e chateada) que percebo que algo realmente sério aconteceu. Antes que possa perguntar ela já despeja.

— Terminei com ele. Estou mal, e se puder não deixar meu dia pior agradeço.

A informação me pega desprevenido e nem sei como reagir.

Nunca fui conhecido por ser um sujeito decente e assim que comecei a trabalhar com Iori confesso que tentei talaricar: sou muito suscetível aos encantos femininos e Iori é simplesmente fora de série.

Essa morena me deu um corte tão bruto que até desencanei, ou melhor, pensei que tivesse desencanado: depois ela virou uma espécie de desafio com seu jeito compenetrado e tão distante, uma recompensa a um trabalho de conquista bem-feito que infelizmente nunca consegui realizar.

Desisti com o tempo e com os milhares de foras criativos, definitivos e até divertidos: ela sente até hoje um prazer especial em dizer que nem que eu seja o último homem da Terra sua resposta será sim porque me vê como um moleque.

Confesso que ouvir isso doeu, principalmente porque com o tempo acabamos virando amigos e saber que ela sente um afeto genuíno por mim mas não me respeita da forma como respeita Nanami ou o imbecil do ex, por exemplo, é péssimo porque eu vejo tudo nela: uma amiga divertida, uma mulher gostosa pra caralho e admiro sua maturidade e o jeito responsável com que leva a vida, embora nunca vá admitir.

É foda reconhecer essa assimetria entre nós.

Só que o mundo gira e nesse movimento quem sabe eu possa avançar algumas posições em sua fila agora que está sem namorado: talvez o que ela precise no momento seja justamente de alguém para se divertir sem compromisso algum, sem cobranças ou expectativas.

O moleque aqui, em outras palavras.

Não sei o que aconteceu e tampouco me interessa saber; pela sua reação e por tudo o que vi de seu relacionamento até agora desconfio que possam voltar, mas até lá nada me impede de tentar de novo e se der certo, que bom pra mim, finalmente vou satisfazer minhas vontades.

Sorrio tanto por dentro com a possibilidade que nem sei como consigo manter a expressão séria: afundo atrás do computador para disfarçar.

— Que chato, Iori...

— Só fica quieto. — Sua voz está cortante e não admite contestação. — O dia todo, de preferência.

Puts...

Começamos mal, mas é o ditado: fez a fama...

Me concentro em atender a esse pedido aparentemente tão simples, mas que é um sacrifício: minha boca não foi feita para ficar fechada e permanecer sentado na cadeira é insuportavelmente chato.

Apesar das picuinhas e conflitos estou acostumado com nossa dinâmica de conversar e implicar um com o outro basicamente o dia inteiro e sinto falta genuína dessa nossa interação, só que toda vez em que a espiono está com a cara terrível, as olheiras a deixando com um aspecto ainda mais mortal e o cenho franzido.

É, hoje ela realmente precisa de sossego. O problema é que esse silêncio está me matando.

Quando a flagro olhando irritada para o lápis que fico batendo na mesa percebo que o melhor é adiantar alguns trabalhos que tenho que fazer fora do escritório antes que faça alguma besteira e acabe a aborrecendo mais.

Geralmente não tenho esse filtro, mas pretendo agarrar a chance de sair com Iori e para isso preciso provar que apesar do jeito idiota posso ser uma ótima companhia para passar o tempo. E na verdade, nisso realmente me garanto.

Só preciso fazer com que ela aceite experimentar.

O problema é esperar alguma coisa de mim depois e sei que ela não vai ser idiota a esse ponto, já me conhece bem.

E o destino está a fim de colaborar comigo pois vejo a propaganda do cover de uma banda que ela adora para o próximo fim de semana depois desse. Um tempo razoavelmente longo de espera e nesses dias tudo pode acontecer, inclusive ela voltar para o insípido do ex-namorado mas seria ilusão pensar que Iori aceitaria sair comigo já nessa semana.

Se bem conheço Iori — e os anos atuando juntos me permitiram desvendar muito de sua personalidade desconfiada — já deve estar esperando que eu seja um completo babaca e dê em cima dela da maneira mais descarada possível.

Esse era o Gojo de antigamente.

O de agora evoluiu um pouco e deixou de ser um canalha para ser apenas um liberal: pretendo respeitar seu espaço e apenas deixar claro que estou à disposição caso ela queira se distrair, com ou sem sexo.

E depois de convencê-la que posso ser um cara divertido e confiável – e de fato, posso, meu probleminha é que geralmente não quero – é só mostrar o valor de uma boa e saudável amizade colorida.

Compro os ingressos e começo a traçar todo o plano na minha cabeça para sair da posição atual de moleque com quem ela implica e não dá bola para o cara que pretendo ser daqui a duas semanas, com quem ela sai casualmente e termina em um motel sem dramas.

Ela se diverte e eu consigo o que quero sem amarras ou expectativas: todos ficamos felizes.

O melhor dos cenários.

Carpe DiemOnde histórias criam vida. Descubra agora