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The problem with believers
They'll let anyone in the door
The problem with deceivers
Is all the bodies buried under the floorboards

Crystalline - The Midnight

"NECRÓPOLE SÃO PAVLO"

Encarando de cima a baixo a fachada neoclássica de um dos principais cemitérios da elite paulistana, Verônica Torres desceu de sua moto e, pela primeira vez, a sensação de alívio ao libertar-se do aperto do capacete em torno de sua cabeça não veio.

Ela ainda se sentia sufocada.

Era a primeira vez em que a ex-escrivã pisava naquele lugar após a morte de seu pai, e todos os meses que se passaram desde então não tornaram a tarefa nem um pouco menos torturante.

Torres sempre enxergou cemitérios como grandes museus a céu aberto, cada túmulo e lápide contando a história silenciosa de alguém que já viveu e que, a qualquer momento, vai sumir por completo de toda a memória.

Ela pensava sobre isso com mais frequência do que deveria. Sobre o que significa quando a última pessoa que possui memórias de alguém em vida, morre.

Seria esse o fim definitivo da existência?

Nunca acreditara em nada disso. Em Deus, no pós morte, reencarnação e toda essa conversa fiada que só serve para confortar aqueles que não se conformam com a finitude da experiência humana. Mas, ultimamente, com todo o tempo que havia tendo para reflexões filosóficas, espirituais e lisérgicas, era interessante deixar-se entreter com devaneios que nunca levavam a lugar nenhum, mas a afastavam da realidade por tempo suficiente para servir como um escape.

Caminhando nas ruas estreitas entre os túmulos, os mausoléus e as obras de arte suntuosas que os adornavam, ela tomou algum tempo lendo nomes, epitáfios e admirando as esculturas feitas por artistas como Victor Brecheret, Galileo Emendabili e Luigi Brizzolara. Independente do que qualquer um pense, o Necrópole era, de fato, um museu a céu aberto. Um museu que parecia consumir-se e ruir de dentro para fora.

Alguns sepulcros tinham flores sobre eles, algumas mais vivas do que outras. Já sobre outros havia lodo, folhas secas e lápides tão desgastadas pelo tempo que sequer era possível ler o que estava escrito. Ter visto a morte de perto tantas vezes fizera com que as sepulturas violadas e os caixões expostos se tornassem detalhes desinteressantes. Isso levantava a dúvida sobre se as pessoas sepultadas em tais condições já haviam sido esquecidas para toda a eternidade, ou se as famílias só não se importavam o suficiente para cuidar dos memoriais.

Adiante da estátua de um anjo choroso segurando um buquê de flores mortas, estava o mausoléu da família Torres. Ele não era tão grande como os outros, nem adornado com nenhuma escultura extravagante. Não. A excentricidade daquela família era exibida de outras formas. Havia uma cruz no topo, feita de granito escuro como o resto da estrutura, uma porta de metal que imitava os raios do sol e que ficava sempre fechada.

Por dentro, um vitral com a imagem de Santo Expedito servia de claraboia, ainda que a luz fosse obstruída pelas cores e irregularidade do vidro. Num correr de olhos rápido, Verônica não demorou a encontrar a lápide do pai entre as outras. Era a mais nova delas e saltava aos olhos.

Júlio Torres

★ 26/08/1955 - ✞ 2021

Delegado, marido, pai, avô e amigo exemplar.

Hesitante, a ex-escrivã tocou o epitáfio, sentindo as elevações da pedra contra a ponta dos dedos e, por mais que estivesse frio como o normal, ela podia jurar ter sentido a pele ferver por um instante.

Crystalline | VeronitaOnde histórias criam vida. Descubra agora