II

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I didn't have it in myself to go with grace

And you're the hero flying around, saving face

And if I'm dead to you, why are you at the wake?

Cursing my name, wishing I stayed

Look at how my tears ricochet

my tears ricochet — Taylor Swift


Verônica piscou uma, duas, três vezes seguidas, mas a figura permaneceu ali. Os mesmos cabelos loiros, um sobretudo preto que gritava elegância, aqueles óculos escuros que ela sempre usava, as maçãs do rosto coradas como nunca e batom marsala sobre os lábios.

— Ele comeu a sua língua? — perguntou a loira, apontando o felino que ainda estava por perto para assistir àquele momento com vista privilegiada.

— Vai embora — disse Verônica.

— Quanta grosseria, hein? Posso não ser mais a sua superior, mas acho que ainda mereço um pouco de educação.

— Não — esbravejou Verônica. — Vai embora, eu não quero te ver.

— Claro. Você saiu do muquifo em que você tá entocada, e ficou aqui parada encarando aquela foto hedionda esse tempo todo porque você não quer me ver.

— Anita, ou... O que quer que você seja, eu não sou a pessoa para quem você quer... aparecer.

— Até que nisso a gente concorda. — Anita aproximou-se, com cautela, de uma Verônica empalidecida e imóvel. — Eu não estava esperando encontrar você aqui nem em um milhão de anos.

Quando a suposta falecida sentou-se ao seu lado, Verônica sentiu.

Ela sentiu o ar deslocando, o roçar breve dos cabelos de Anita em seu ombro, o cheiro único do Dior Hypnotic Poison que a ex delegada usava todas as manhãs e, no instante em que a loira ergueu a armação dos óculos até o topo da sua cabeça, Verônica viu.

Ela viu aqueles olhos indecentemente azuis que a encaravam de volta com a mesma soberba de sempre, as marcas do tempo quase imperceptíveis em sua pele e o peito subindo e descendo conforme ela respirava.

— Se você está aqui — começou Verônica. — Quem está lá? — Ela indicou o sepulcro que carregava o nome da mulher diante de si.

— Talvez esteja vazio. — Berlinger balançou os ombros. — Ou talvez seja outra pessoa. Só sei que eu é que não sou.

— Eu vi você morta. Eu te toquei e, porra, você tava gelada, eles te colocaram dentro de um saco preto e te levaram embora — desabafou Verônica, cada vez mais próxima de um colapso.

— E depois?

— Como assim depois?

— O que aconteceu depois, Verônica?

— E como é que eu vou saber? Eu tava ocupada demais fugindo da polícia para não ser presa pelo seu assassinato, e tentando acabar com a raça do Matias e da corja para qual você trabalhava.

— Você tá sempre ocupada, né? Salvando o dia, salvando sua pele, sem se importar com as consequências. — E lá estava ele de novo, o tom frio nas palavras da ex delegada enquanto ela desviava o olhar para qualquer lugar em que Verônica não estivesse. — Que merda.

— O que você tá tentando dizer?

— Você tinha tudo, Verônica. Uma família, uma casa, amigos, um bom emprego, a vida normal que qualquer pessoa quer ter. Mas você tinha que ir lá e foder com isso, explodir feito uma granada e destruir o que estava ao seu redor.

— Você não faz a menor ideia do que tá falando. Eu perdi qualquer chance de ter uma vida normal quando tentaram matar o meu pai, Anita. Alguma coisa mudou dentro de mim e não foi porque eu quis.

— Você tinha escolha, escrivã. — A loira levantou-se e deu alguns passos para trás. — Você tinha a escolha de não se meter no meio dessa desgraça, de sair ilesa e voltar pra casa no fim do dia com as mãos limpas, mas você deu as costas pra tudo e pra quê? Olha só onde você está.

— Eu precisava salvar aquelas mulheres, mas não espero que você entenda. — As linhas de expressão no rosto Verônica se fecharam ainda mais. — Isso ia exigir que você se importasse com alguém além de si mesma.

— Eu não entendo, porque, diferente de você, eu não escolhi essa vida. Ou eu entrava nessa, ou eu acabaria como uma daquelas garotas que o Brandão enterrou no parque. — Verônica engoliu em seco, a memória dos cadáveres e do cheiro de carne humana queimada sufocando seus sentidos. — Eu precisei lutar pela minha sobrevivência nesse sistema desde que eu era adolescente, enquanto você ia para a Disney com a sua família ou coisa assim.

— Era esse o seu problema comigo, então? Todo esse ressentimento, o fato de eu ser... — Ela queria dizer "filha do meu pai", mas com as guardas da ex delegada estando tão altas e os ânimos tão exaltados, talvez esse não fosse o melhor momento para mencionar que vasculhara seu passado. — De eu ter tido uma família.

Berlinger respirou fundo, o gosto amargo em sua boca não dava sinais de que iria embora tão cedo. Ela cerrava os dentes com tanta força que a mandíbula começou a latejar.

Estava cansada, as duas estavam.

— Quando você chegou na delegacia, a filhinha do delegado, a protegida do Carvana, eu soube que, de alguma forma, a gente ia se destruir. — Ela sentou-se ao lado de Torres outra vez. — Você era certinha demais, enxerida demais, idealista demais. Você acreditava no que a gente fazia e alguém assim na polícia não dura muito tempo.

— Eu mudei.

— Não mudou o suficiente. Você está por aí com uma identidade falsa, se lamentando pelos mortos e fugindo dos vivos, acreditando que pode implodir uma máquina gigante que se retroalimenta. Ainda é a escrivã estúpida que eu conheci há anos, só com algumas cicatrizes a mais e uma ficha criminal.

— Você está errada outra vez, doutora. — Torres estalou a língua depois de usar o título. — A Verônica de antes não sabia onde estava se metendo, ela era fraca, inocente e impulsiva. Ela idolatrava pessoas pelos motivos errados, ela confiava nas pessoas. Mas ela morreu aos poucos ao longo desses anos. E não me surpreende que você não consiga enxergar.

Após longos segundos de silêncio, Anita ergueu o corpo e parou diante da morena.

— Você tá livre essa noite?

— Por quê?

Berlinger revirou a bolsa que carregava consigo e tirou uma caneta esferográfica de dentro dela. Antes que Verônica pudesse protestar, a ex delegada alcançou seu punho e o levou até si, para escrever alguma coisa na palma da mão da outra.

— Esse é o endereço do meu hotel. Procure por Karina Schmidt do 304C. Talvez você possa me mostrar o quanto mudou. E quem sabe eu não te conto o que aconteceu depois que você fugiu?

Com um sorrisinho cínico em seus lábios desenhados, a loira sustentou seu olhar na ex colega de trabalho o quanto pôde, depois deixou-o passear pelo arredores daquele lugar decrépito em que a "sepultaram".

— Eu sempre quis ser cremada, ter minhas cinzas jogadas numa cachoeira ou coisa assim.

— Bem que eles podiam ter te colocado num lugar melhorzinho — disse Verônica, levantando-se para caminhar ao lado de Anita rumo a saída do Necrópole.

— Cemitérios foram feitos para os vivos, Verônica. Só te enterram sob uma sepultura bonita se tiver alguém pra chorar em cima dela.

E então, as duas se mantiveram em silêncio até o fim do caminho.


✦ Notas: Veio aí e tá quase no fim aaaaaaaa Eu tô maluca porque não quero que isso termine, sinto que tem muito a se desenvolver com essas duas, mas também não quero acabar deixando vocês com uma história incompleta, então meu primeiro ato nas próximas férias será escrever um calhamaço Veronita. Teje dito, fé em Deus.

Espero que cês estejam curtindo tanto quanto eu <3



Crystalline | VeronitaOnde histórias criam vida. Descubra agora