A colisão a jogou para trás, o impacto reverberando por seu pequeno corpo enquanto o chão duro a recebia com crueldade. Aysha sentiu uma dor aguda em uma das mãos, que agora estava ralada, com pequenos arranhões ardendo como testemunhas silenciosas de sua tentativa desesperada de amortecer a queda.
  Confusa, ofegante, e com um toque de medo, ela levantou os olhos, esperando ver um dos capangas de Enon prestes a agarrá-la. Mas o que encontrou a fez parar e sentir um misto de surpresa e raiva: diante dela, estava um simples garoto.
  Ele se abaixou rapidamente, seus olhos verdes, brilhantes como esmeraldas majestosas, refletindo uma expressão de urgência.
   — Perdoe-me! — pediu ele, a voz carregada de sinceridade. — Ah, não. Pelo deus, machucou-se? — Ele agarrou a mãozinha dela com cuidado, examinando os arranhões e o sangue misturado com terra. Com uma gentileza inesperada, ele soprou suavemente sobre a mão dela, tentando remover a sujeira.
   — Ai! — Aysha resmungou, retirando a mão com um pequeno sobressalto, a dor ainda latente.
  — Desculpe-me, por favor. — Ele pediu novamente, seus olhos verdes mostrando um misto de arrependimento e preocupação.
  Aysha, agora fitando aquele que a havia derrubado, notou que ele vestia roupas simples, tingidas em tons terrosos que emolduravam sua figura franzina e infantil. Seus cabelos loiros caíam em desordem sobre a testa, e os olhos verdes que tanto a haviam intrigado pareciam abrigar duas esmeraldas claras, brilhantes, quase mágicas.
O que ele fazia ali? Ela estava sendo perseguida por malfeitores! Como outra criança poderia passear pelo mesmo lugar tão tranquilamente enquanto a outra corria perigo? Ela pensou inconformada, exigindo justiça por isso.
    — Porque não olha por onde anda? — perguntou ela com revolta, semicerrando os olhos — Olhe só o que fizeste com minha mão! — e deu ênfase e assoprando a mão na tentativa de amenizar a dor.
   — Mas quem corria não era eu — defendeu-se ele, não entendendo o porquê da mesma o culpar, mesmo ele se sentindo visivelmente culpado.
   — Eu estava sendo perseguida por sequestradores! — disse ela, exasperada — Como que eu não estaria a correr? — Sua pergunta seguinte carregava uma certa dose de indignação, como se a resposta fosse óbvia.
  O garoto ficou momentaneamente atônito, sem saber como reagir à revelação. Ele próprio era uma nota fora do tom, e as circunstâncias o haviam surpreendido.
   — Sinto muito... — falou ele em forma de consolo depois de alguns segundos. Ele não conseguia entender o porquê das ruas pacíficas da cidade estarem se transformando em locais perigosos. Todos viviam em paz e harmonia naquela cidade. — Alguns mais que os outros — Mas por que agora seria diferente?
  — Já sei! — exclamou ele de repente com uma ideia reluzindo em sua mente. Se o mundo estava se tornando perigoso, então ele ajudaria aquela menina e cuidaria de seu ferimento
  — Venha comigo — Ele levantou-se do chão e estendeu as mãos com um gesto amigável, oferecendo ajuda para que ela se erguesse.
  — Para onde? — Com certa desconfiança, ela recuou um pouco da mão dele. Sua avó sempre lera e recitava o capítulo 9 de Anaylla que dizia para não aceitar nada de estranhos, não ir a lugar algum com eles ou falar com eles, por mais que sua aura dissesse que poderia confiar neles.
  — Minha casa. Posso cuidar da sua mão ferida — explicou ele, tirando a poeira de suas vestes.
  — Obrigada, mas dispenso, garoto.
  — Tens medo? —  ele riu de leve, desafiando-a — Oras, não vou roubar-te. — disse, dando a mão a menina para que a pegasse para ajudá-la a se levantar do chão. Ela hesitou, mas pegou sua mão. E aquele toque minimalista… Fez-a sentir segura, como se sua aura dissesse que poderia confiar e ir com ele, aquele estranho.
  Independentemente de Anaylla ter sofrido as consequências ao o fazer, ela decidiu ignorar o fato com sua tamanha teimosia, nunca se rebaixaria a uma provocação. Então levantou-se do chão, determinada, e retirou folhinhas secas que se encontravam no seu vestido florido, começando a responder perfeitamente à provocação do garoto:
  — Medo? Eu? — riu com um misto que parecera até deboche — o medo é apenas uma sombra fugidia, pronta para se dissipar diante do nosso riso, garotinho.
  — Bem, então vamos, garota corajosa — Ele estendeu a mão sutilmente, tomando amigavelmente e com delicadeza a mão ilesa de Ayla, então os dois começaram a caminhar lado a lado, rumo a casa do menino.
  — Como chamas? — com um desejo sincero de construir amizade, ele perguntou com um sorriso acolhedor iluminando seu rosto — Me chamo Apollo Elênio Misae. Mas pode chamar-me de Apollo ou somente Pollo — disse, revelando um apelido que soava afetuosamente em seus lábios.
  — Sou Ayla Aysha Allanane — revelou com suavidade, antes de acrescentar com um toque de autenticidade — Mas prefiro que me chamem de Ayla
  — É um belo nome. Prazer em conhecê-la, Ayla.
Em resposta ao elogio, Ayla acolheu o caloroso cumprimento dele com um sorriso.
  — O prazer é todo meu — respondeu.
  — Como conseguiu fugir dos malfeitores? — perguntou ele tentando conter a descrença e surpresa que ainda pairava em suas feições, mas falhou miseravelmente. Mas ela parecia muito mais nova que ele, não que ela não fosse esperta para tal coisa. Mas realmente achava esse acontecimento inacreditável!
  — Mordi um e arranhei o outro quando queria me colocar em um alforje. — respondeu ela simplesmente rindo, agindo igual Analla que fizera aquilo para se proteger dos capangas de seu pai.
  — Oh… e não ficaste com medo?
  — Só um pouco, mas eles eram burros demais. Então eu não precisava temer tanto assim.
  — Quantos anos tens? — questionou, com curiosidade subjacente.
  — Cinco anos.
  — Não parece pelo jeito que falas.
— Eu sei, sempre dizem isso. Ninguém acredita que eu decorei e consigo ler “As Aventuras de Anaylla” agora sem a ajuda de minha mãe.
  — Sabes ler? Com apenas cinco anos? — perguntou ele boquiaberto. Ele faria oito anos e até agora ainda não tinha aprendido a ler, fora pouquíssimas vezes a escola local, pois sempre ajudava sua mãe e ficava com os irmãos em casa para sua mãe e seu pai trabalharem.
  — Sei juntar as sílabas e escrever algumas palavras, leio muito devagar ainda, mas leio. E minha mãe me ajuda, pois é professora. Quantos anos tens? Ainda não sabes ler? — ela franziu a testa. Se perguntando o porquê daquele garoto estar tão surpreso assim.
  — Tenho sete anos, e  meio que… tenho certa dificuldade com o alfabeto Alvdoniano. — respondeu ele levando a mão a nuca, um pouco envergonhado pois as crianças daquele país tendiam a serem alfabetizadas aos seis com a ajuda dos pais ou numa escola, pois em todos os estados eram de tamanha obrigatoriedade ter pelo menos de uma a duas escolas públicas locais, para melhor formação do país.
  Alvdon era o melhor país na escalada da Europa por causa disso.
  — E Também… — prosseguiu ele — Nem meu pai e minha mãe sabem ler para me ensinar, e a escola não dá tempo de comparecer pois fico em casa cuidando dos meus irmãos para a mamãe e o papai trabalharem.
  — Ah… — Ela apenas expressou isso.
  Os dois caminharam juntos por poucos minutos em algumas ruas e logo se depararam com uma casa modesta, mas de beleza singular que surgia na paisagem. Seus muros, pintados de um branco imaculado, abraçavam um jardim exuberante, adornado com um caleidoscópio de flores, cada pétala sussurrando que havia chegado a primavera.
  — Esta é sua casa? É enorme! — admirou Aysha.
  — Meus pais trabalharam muito para conseguir — disse ele num sorriso triste, pois se lembrava como a mãe chegava da casa do prefeito.
   Exausta, com frequência ficava doente, ele nunca sabia o que acontecia com ela naquela casa, pois o pai trabalhava no mesmo local e não acontecia nada com ele. Era estranho.
Ao chegarem ao alpendre, Ayla observou cada mínimo detalhe da bela casa do menino. O chão de madeira maciça rangeu levemente sob seus pés. Ela olhou para o jardim, que continha rosas e flores de todos os tipos, assim como vira as flores do jardim que o seu amigo, Eliek cuidava, mas o que não tinha ali era um girassol.
  — Bem vinda a minha casa, amiga.
O menino, com um sorriso, abriu a porta, sua maçaneta de ferro polido, e ela adentrou timidamente. O interior revelou-se uma sala maior que a da sua casa, mas era um verdadeiro santuário de aconchego, o chão era de madeira de carvalho-branco que exalava o aroma inconfundível da natureza. Uma lareira aconchegante ocupava o centro da sala, com um quadro acima dela retratando uma paisagem idílica de um campo florido.
Nas paredes brancas também continha mais quadros esplendorosos e janelas com cortinas de renda onde a luz dourada do sol derramava-se sobre o chão de tábuas de carvalho, criando um tapete de sombras e luz. 
  Toda a casa estava decorada com móveis rústicos que pareciam da era de reis e rainhas. Os pais dele aparentavam ser bastante ricos.
   — Ora, mas ainda nem sou sua amiga — ela cruzou os braços, a mão direita por mais que ardesse, mas arqueou as sobrancelhas, olhando para ele.
  — Oras, e porque não? — perguntou, parecendo começar a se doer com o seu desvalorizar.
  — Amigos se fazem com o tempo, e conversando. Para alguém virar meu amigo tem que conquistar minha confiança. Não irei dar minha amizade de bandeja.
    —   Bem, então… — ele andou alguns passos e pegou um assento — sente-se para que eu possa cuidar de sua mão, senhorita confiança.
Ele colocou o banquinho de madeira esculpido com minúcia diante da garotinha com cuidado. Cada movimento era coreografado como uma dança silenciosa, uma reverência à sua nobre missão de fazer ela sentir-se confortável. E que confiasse nele.
  — Onde estão seus pais e seus irmãos? — para confiar Aysha tinha o hábito de fazer perguntas, muitas perguntas. Fora assim com Wendell, o enchera de tantas de todos os tipos, para ver se o mesmo era fiel em amizades.
— Papai está no trabalho, e a mamãe fora levar Dain e Laurel para fazer uma consulta com o médico — Ayla enfim se acomodou no banquinho graciosamente quando seus olhos observavam atentamente cada gesto do garoto enquanto ele entrava na cozinha e voltava segundos depois trazendo uma jarra de barro com água, um pano de linho, e um pote de um líquido amarelo-esverdeado.
   Ele ajoelhou-se sem vergonha alguma aos seus pés, — O que quase fez-a se envergonhar — e segurou sua mão com suavidade e cuidado. O garoto ergueu a mão dela, como se estivesse segurando uma pétala de rosa frágil, e acomodou-a gentilmente em seu colo.
  Sua voz, suave como a brisa de primavera que sussurra nas copas das árvores, ofereceu consolo e calma à garotinha:
— Vou limpá-la, está bem? — ele perguntou, e Ayla assentiu com uma pequena expressão de concordância.
— Mamãe sempre nos diz que somos extremamente desastrados quando caímos —  comentou ele num sorriso de canto — Nos machucamos feio, mas ela vai lá mesmo assim, e limpa nossos machucados. — ele pega o pano e umedece-o com água da jarra rústica, e começa a limpar a mão da garota.
  — Diz que pode arder ao limpar por causa do contato do pano com a água, a terra e a pele exposta, mas sempre poderemos suportar. — completou ele.
Aquela sujeira e os vestígios de sangue logo se dissolvem sob seus cuidados, e ela de fato sentiu uma sensação de ardor e desconforto, mas acabou suportando em silêncio.
Então, ele pegou o frasco amarelo-esverdeado e o abriu.
— Isto vai doer? — Ayla questionou, uma expressão um pouco apreensiva, pois possivelmente tinha medo de remédios medicinais.
— Provavelmente, até mais de quando caiu, mas isso vai ajudar a sarar mais rápido, o que a fará ser bastante corajosa. És corajosa, não? — Ele ergueu a sobrancelha.
  — É claro que sou! — retorquiu ela, quase se sentindo ofendida, cravando-o com o olhar. Por mais que ele parecia ser alguém legal ele tendia a ser muito provocante, até mais que Wendell, por deus! Ela não gostava disso, mas ele deu um risinho maroto.
   — Então, vamos lá.
  Ele enfim despejou o líquido na palma da mão da garotinha, com precisão. O líquido deslizou pela mão delicada da mesma como um riacho serpenteante e, instantaneamente, uma sensação de ardor a envolveu.  
   Ela contorceu seu rosto em uma careta adoravelmente cômica, um reflexo dos efeitos inesperados do líquido sobre sua mão. O garoto soltou uma risada e soprou novamente sobre a mãozinha dela, transformando a ardência em um doce frescor que acariciava sua pele. Ou pelo menos, tentando causar algum frescor.
   — Ah, está ardendo mais, seu tolo!
Ele riu.
— Ah acalme-se minha amiga Ayla Aysha, pois amanhã a dor será apenas uma lembrança. — afirmou ele, como se soubesse que a dor do momento se transformaria em uma cicatriz, que contaria a história da coragem dela e da amizade que floresceu entre eles, impulsionada por um simples empurrão do destino.

A Pedra da lua e o Girassol (DEGUSTAÇÃO)Onde histórias criam vida. Descubra agora