Chuva, Chuvisco, Chuvarada

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06:36

As terças de Kelvin e Flora costumavam começar com uma rotina agradável e familiar, quase como um comercial de margarina. Era sempre a mesma cena: batidinhas suaves na porta, seguidas pelo sorriso bobo de Ramiro, que os envolvia em uma avalanche de cócegas. O sol matinal iluminava o quarto através das cortinas, banhando o espaço em uma luz dourada que era acompanhada pelas risadas de Flora, um som que Kelvin jamais se cansaria de ouvir.

Mas hoje, algo estava diferente.

O dia amanheceu sob um manto cinza, com a chuva torrencial batendo contra as janelas e o vento sacudindo violentamente as cortinas. O quarto, que antes se enchia de calor e risadas, agora estava frio e sombrio. Flora, que havia dormido toda torta, com a cabeça aos pés da cama, acordou abraçada ao pé de Kelvin, sentindo a ausência daquele que sempre vinha lhe despertar com brincadeiras.

Confusa, ela subiu pelas costas do pai, sentando-se com uma perninha de cada lado dele, sentindo sua frustração crescer. As terças eram especiais porque "o barbudinho" vinha acordá-los, e hoje, tudo estava errado.

- Papai! - ela chamou, impaciente, cutucando a testa de Kelvin incessantemente. Sem resposta.

"Poxa, esse homem dorme demais," pensou Flora, formando um biquinho de desaprovação. - Papai... acorda! - a esquentadinha reclama, enfiando seu rosto contra à costa do pai e, num gesto desesperado, Flora fincou os dentinhos em sua costela, concordando consigo mesma que esse, obviamente, era o único de jeito de fazê-lo acordar.

- Você acordou! - Flora gritou, agora animada, enquanto o pai tentava processar o que acabara de acontecer. Kelvin, ainda atordoado, quase voltou a dormir, mas outro cutucão o manteve desperto.

- Acordei, filhote, - murmurou ele, dando uma beliscadinha na bochecha da menina. Apesar de não ser uma pessoa matinal, ele tentava manter o bom humor, mas hoje estava mais difícil. A madrugada fora pesada, com pensamentos intrusivos e preocupações que não o deixaram em paz. A ausência de Ramiro apenas aumentava essa sensação de inquietude.

- O Rams já passou por aqui? - perguntou Kelvin, já sabendo a resposta, enquanto puxava Flora para mais perto, embalando-a nos cobertores. Gostava de aninhar a menininha em seu colo como se a mesma ainda tivesse seus 2 aninhos.

- Não, papai, - Flora respondeu, baixando o olhar, também sentindo a falta do amigo. Para ela, Ramiro costumava ser um ponto de luz nas manhãs chuvosas como essa, mas hoje, ele não aparecera.

Kelvin tentou não se preocupar. Bom, ele estava sumido desde a manhã do dia anterior, mas, talvez a conversa tenha assustado Ramiro, talvez a chuva estivesse segurando-o em casa, ou quem sabe ele simplesmente tirou uma folga e decidiu dormir mais um pouco, não é? Kelvin precisava acreditar que estava tudo bem, que Ramiro ainda voltaria.

🌼

As horas passaram, e quando o relógio marcou 11:48 da manhã, a chuva continuava caindo sem trégua. Ramiro ainda não aparecera, e Kelvin estava cada vez mais inquieto. A saudade do peão começava a se transformar em uma irritação crescente, agravada pelo cansaço e pela preocupação. Flora, por sua vez, estava feliz por mais um dia sem aula, mas Kelvin começava a se preocupar com as faltas acumuladas.

Eles permaneceram no quarto, assistindo Cocoricó e comendo o bolo de cenoura que Zeza havia preparado. Flora, com o rosto lambuzado de chocolate, pediu mais um pedaço, mas Kelvin, desanimado, apenas indicou que ela fosse buscar sozinha.

- Não quer mais. - Flora mudou de idéia, respondendo com um bocejo e se esticando como um pequeno tigre, arrancando uma risada nasal de Kelvin.

- Isso se chama preguiça, pirralhinha, - ele comentou, cutucando a barriguinha dela.

- Não chama, não - disse Flora despreocupada, começando a brincar com o cabelo do pai.

- Ai, Florinha, chega de preguiça, chega de desânimo, pode levantar, temos que reagir. Tá comigo ou não tá, pequena? - Kelvin de repente se animou, levantando-se de um pulo. Flora, contagiada pelo entusiasmo repentino do pai, respondeu com um grito de "SIM", se levantando na cama e se jogando em cima dele como um pequeno coalinha.

Desceu para a cozinha com Flora pendurada em si, e ao sair do cômodo com dois pedaços de bolo em mãos, deu de cara com Ramiro na entrada, completamente encharcado pela chuva, com as botas cobertas de lama e o rosto vermelho de frio.

Kelvin largou os pratos no balcão e correu em direção a ele, segurando Flora firmemente para que ela não caísse. Os olhos de Ramiro se iluminaram ao ver os dois, mas quando ele se preparou para abraçá-los, Kelvin deu um passo para trás.

- Ei, ei, ei! Você tá todo molhado, Rams, - Kelvin disse, franzindo o nariz e indicando as roupas encharcadas de Ramiro.

- Kevinho! Você não vai deixar eu te dar um abraço, é? - o encara enfurecido, com um biquinho nos lábios.

- Vai se trocar antes, vai - Kelvin ordenou, se aproximando apenas para dar um beijo rápido na bochecha do peão. Flora aproveitou o momento para se agarrar a Ramiro, como se estivesse colada a ele.

- Viu só, Kevinho? A Florinha é minha única aliada, a única que me ama de verdade, - Ramiro disse, mostrando a língua para Kelvin.

- O papai é muito chato, - Flora retrucou, cruzando seus bracinhos, - 'tava tristinho até agora, falando 'bla bla bla Ramiro, bla bla bla Rams, bla bla bla, meu amor.' - Flora entregou Kelvin sem pestanejar, fazendo Ramiro abrir um sorriso malicioso enquanto Kelvin arregalava os olhos, surpreso e embaraçado.

- Flora! - Kelvin protestou, tentando tirar a menina do colo de Ramiro, que parecia mais colada nele do que nunca.

- "Meu amô'", é? - Ramiro provocou, puxando Kelvin mais para perto pelo colarinho de sua camiseta.

Kelvin não pôde evitar; estava completamente apaixonado. Por mais que tentasse esconder seus sentimentos, eles sempre escapavam, se revelando nos momentos mais inesperados. E mesmo que às vezes fosse difícil expor tanto de si, Kelvin sabia que não havia como negar o que sentia. Ele só queria que Ramiro sentisse o mesmo, sem reservas, sem medos, como agora, enquanto se abraçavam ali, com Flora entre eles, formando um aconchegante sanduíche humano.

Porém, de repente, o toque insistente do telefone os fez se separar e Luana, de seu quarto, grita impaciente para que alguém o atenda. Kelvin olhou para Ramiro com uma expressão de preocupação crescente antes de se afastar para atender. Como se algo em seu peito o alertasse que aquela ligação não traria boas notícias.

- Alô? - Kelvin atendeu, tentando esconder a apreensão na voz.

- Bom dia! Falo com o senhor Kelvin, correto? - o loiro confirma, fazendo um pequeno "uhum" - Aqui é Mariana do Conselho Tutelar. Precisamos conversar urgentemente sobre a situação da sua irmã, Flora Santana. Recebemos uma denúncia anônima e precisamos esclarecer alguns pontos. - A voz do outro lado da linha era fria e profissional, sem traço de empatia.

Kelvin sente o chão sumir sob seus pés. O que ele mais temia estava acontecendo. A denúncia anônima, a possibilidade de perder Flora, tudo parecia desabar sobre ele em questão de segundos. Merda.

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voltei, rs 🙈

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⏰ Última atualização: Sep 02 ⏰

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Flora | KelmiroOnde histórias criam vida. Descubra agora