I

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Aurora on

Eu sentia a ponta da minha gasta bota de couro arrastando no chão enquanto ambos os homens me arrastavam pelos cotovelos. O barulho era irritante, só não era mais do que a falta de iluminação do longo corredor de pedras. Eles riam enquanto caminhavam e assim que fizeram uma curva e eu avistei uma luz no final do que parecia ser um túnel, eu entendi tudo.

Os gritos empolgados, ligeiramente abafados pela distância e pelas paredes rochosas, não me enganavam. Eu estava retornando a arena.

5 anos.

99 vitórias.

Havia rumores -eu achava uma falsa promessa- de que se você completasse 100, você estaria livre. Eu não acreditava. Mas eu também sabia que eles não queriam que eu vencesse essa batalha.

Uma prisão disfarçada de campeonato. Eles nos trancavam aqui, nos tratavam como animais e te davam duas opções: você luta e a cada vitória você ganha luxos e redução de pena ou você apodrece na cela. E a cereja do bolo? Não importa sua pena, ao atingir a centésima vitória, você está fora. Bem, pelo menos deveria. Mas não havia centésima vitória. Eles garantiriam isso.

Eles te jogavam em uma arena para entretenimento público. Colocavam meros humanos contra bruxos. Nos colocavam contra elfos, fadas. Nos colocavam contra nossa própria espécie.

Eles queriam nos ver perder.

No começo eu lutei contra apenas homens. Quando completei 60 vitórias, lutei contra elfos. Com 90 foram a vez das fadas. E minha última...?

Eu mal havia saído viva do último conflito, um com um bruxo. Mas eu havia vencido.

99.

E agora, mesmo mal fazendo uma semana de meu último embate, aqui estava eu. Era óbvio. Eles não queriam que eu me recuperasse, eles não queriam que eu arrumasse forças. Eu era tudo aquilo que eles não queriam: um lampejo de esperança em um sistema que não queria que isso existisse. Porque se a humana conseguisse, o que impediria os outros seres muito mais fortes do que ela de chegarem lá?

Eles precisavam me parar. E precisava ser agora.

Porque a arena estava cheia. E a maior parte havia ido para ver minha morte, mas talvez houvesse alguém ali que torcesse pela minha vitória.

Infelizmente isso não aconteceria.

Eu morreria hoje. Mas eu certamente não permitiria que a ideia de mim se fosse tão facilmente quanto minha vida.

-Dessa você não passa, coração-o guarda debochou, me colocando no chão

Seu companheiro mal se deu o trabalho de permanecer ali. Ele virou as costas e se foi, como se aqueles meus últimos momentos de vida, como se minha últimas palavras, não fossem nada. Como se ele já estivesse acostumado a mandar pessoas a morte.

-É uma pena-ele anunciou, se aproximando de mim bem a tempo de eu captar aquilo que o distinguia dos demais: as orelhas e caninos pontudos- Você até que é bonita para uma humana

Quando sua mão se ergueu para meu rosto, eu levantei a minha bem na hora, agarrando seu indicador e virando-o com tanta força para trás, que a única coisa audível foi um estalo doloroso seguido de um grito. Um xingamento baixo foi proferido por ele logo antes de ele puxar meus cabelos para trás e dar um chute tão forte em minhas costas, que eu rolei arena a dentro pelo que parecia ser, no mínimo, uns 3 ou 4 metros.

Poeira se levantou, meus membros ralaram naquela mistura de areia, cascalho e pedras. Eu ouvi algo ser jogado próximo a mim e ao tatear o chão, com a cabeça enterrada no mesmo, eu senti uma lança.

Ótimo. Pelo menos eu tinha uma arma.

-Vai ser um prazer te ver morrer, sua imunda-o guarda ladrou enquanto eu ouvia o som do portão de ferro sendo fechado, impedindo minha saída pelo lugar que eu entrei. Tudo que eu pude fazer foi firmar a ponta da lança no chão, enquanto eu grunhia e tentava levantar- E se sobrar alguma coisa desse seu corpinho, talvez eu e meus amigos visitemos seu caixão

Eu trinquei o maxilar enquanto tentava conter a forte ânsia de vômito que havia me atingido naquele momento. Minhas duas mãos foram para a lança fincada no chão, meus braços a forçando para baixo enquanto eu forçava meu corpo para cima. Busquei firmar meus joelhos nas pernas doloridas e ignorei minha coluna latejando quando cuspi uma quantidade generosa de sangue no chão que era mais oriundo de minha última luta do que do próprio chute desse panaca.

-E quanto a sua raça podre e inferior, será a porra de um prazer dar a notícia aos seus-

Eu iria morrer.

Eles não me deixariam viver depois de tudo que aconteceu nos últimos anos. Eu só estava viva até agora porque além de uma vontade fodida, e uma habilidade curiosa, eu era entretenimento. Se eu completasse a centésima vitória, eu não seria mais entretenimento. Eu seria uma ameaça e uma vergonha para os bruxos. Seria a porra resistência em carne humana. Então eu tinha duas opções.

Eu apenas morreria.

Ou eu morreria e levaria alguém comigo.

Foi burrice erguer minha lança em um único movimento e rotacionar meu corpo com a intensidade que eu o fiz. Eu mirei exatamente entre as grades do portão de ferro enferrujado. Eu lancei a arma com tanta força que a lâmina girou de maneira impecável, cortando o ar com um zunido agudo. Mesmo sendo um elfo com o triplo de minha força, e mesmo tendo um treinamento melhor que o meu, ele não conseguiu parar a lâmina. Não quando eu era imprevisível e inconsequente e ele "intocável". E para o azar dele, eu sabia extamente onde ficava o coração em sua espécie. Bem na linha do esterno humano, bem no meio do peitoral.

Quando sangue jorrou de sua boca eu sorri. Quando ele caiu de joelhos e eu olhei de cima, meu queixo se ergueu ao mesmo tempo que meu sorriso se alastrava.

-Te encontro no inferno, seu grande filho da puta

Agora sim.

Agora sim eu estava preparada para morrer.

Coração de dragão Onde histórias criam vida. Descubra agora