Numa suave penumbra de uma tarde de outono do dia quatorze de setembro, o sol derramava seus raios dourados sobre a terra pintando o mundo com tons de âmbar e carmesim. Apreciando o silêncio e a brisa fria encontrava-se uma bela garota de nove anos sob o abraço acolhedor de uma majestosa árvore. Ela era uma centenária figueira, que estendia seus galhos entrelaçados como os dedos de um amante, criando um dossel de folhas vermelho-fogo que sussurravam as lembranças e recordações que Ayla tinha do passado.

Cada folha que caia ao chão era um fragmento de memória sazonal, um vestígio do tempo que insistia em partir, mas que ficaria guardado sempre em seu coração o dia em que conheceu seu maior confidente — mas que havia levado uma grande bronca por isso. Cinco anos haviam transcorrido desde o encontro fatídico que selara a amizade entre Ayla Aysha e Apollo Elênio.
Enquanto o presente se desenrolava sob o manto dos ventos que sussurravam entre as folhas, Ayla mergulhava nas memórias daqueles anos que marcaram sua vida...

Aysha tinha nas mãos um livro. O título do mesmo se perdia na obscuridade de sua capa e páginas amareladas desgastadas pelo tempo, mas seu conteúdo a transportava para mundos desconhecidos e histórias inexploradas. O tempo parecia congelar-se à medida que ela se perdia nas páginas, e as folhas, que deslizavam lentamente para o chão, criavam um tapete de ouro sob seus pés. Os sons da natureza, desde o gorjear dos pássaros até o sussurro das folhas, serviam como trilha sonora para este cenário de serenidade e contemplação.
Até que, em um daqueles momentos efêmeros que só o destino pode proporcionar, um garoto de oito anos vagava preocupadamente pelas redondezas. Seus passos errantes o levaram a um local onde a vida, em toda a sua sutileza, tinha orquestrado um encontro inusitado. Lá, sob a imponência de uma majestosa árvore, repousava uma certa garota que ele conhecia bem.
Esse menino, cuja idade ainda era um prelúdio para as responsabilidades da vida, era um espírito inquieto, possuidor de um sentido de travessura inato. E teve a ideia de pregar uma pequena peça na garota, que ali estava vulnerável em seu entretenimento.
Assim, de maneira furtiva, ele se aproximou, movendo-se com passos sutis e silenciosos, com o intuito de não perturbar a quietude do ambiente. Seu olhar fixou-se nos cabelos dela, cujos fios escuríssimos balançavam ao sabor do vento, como delicados fios de ébano. Era um alvo irresistível para suas brincadeiras. Com destemor e agilidade, puxou um fio daquela seda negra, na tentativa de atrair a atenção da garota.
Os olhos da menina se desviaram de seu livro em resposta ao gesto, mas, ao explorar o espaço ao seu redor, ela encontrou apenas o vazio do ar, pois o garoto habilmente havia se escondido atrás do tronco da árvore. Diante dessa artimanha, Ayla encolheu os ombros, convencida de que sua mente brincava com sua imaginação, voltando assim sua atenção à leitura.
Entretanto, o garoto não se deu por vencido. Com as suas mãozinhas ágeis, ele cobriu os olhos da menina, privando-a momentaneamente da visão, enquanto sua risada travessa ecoava pelo ambiente.
A garota franziu a testa, mas sorriu ao reconhecer o toque travesso, pois o conhecia bem a ponto de identificá-lo a quilômetros de distância.
— Apollo! — Exclamou ela, dando fim à brincadeira do garoto.
— Ah, não é justo! Como sempre descobres que sou eu? — Expressou ele, demonstrando um desapontamento teatral.
— Porque é impossível não o perceber — ela riu.

Ayla estava absorta nas lembranças com o menino, quando um toque leve e inesperado em seu ombro a despertou de volta à realidade. Seus olhos exploraram o local, mas ninguém estava visível. No entanto, ela lembrou quem que adorava fazer este tipo de brincadeiras, e este indivíduo somente poderia ser Apollo. Um sorriso travesso começou a se esboçar em seus lábios, pois, Ayla, estava determinada a virar o jogo do garoto a seu favor.
   Com passos silenciosos e habilidosos, ela contornou o imponente tronco da árvore, aproximou-se de Apollo. Suas mãos já estavam prestes a alcançá-lo, garoto não tinha ideia de que sua amiga estava à espreita. Até que ela cutucou Apollo pelas costas de forma inesperada e o assustou:
   — BUUUU!
O resultado não poderia ter sido melhor. O menino deu um pulo, surpreendido.
Apollo, agora virado para encarar sua amiga com um toque de susto nos olhos, logo percebeu que havia sido vítima de sua própria armadilha. Ayla, contagiada por sua própria sagacidade, caiu em gargalhadas.
  — Te peguei!
  — Não é justo! Por que sempre descobres que sou eu?
  — Porque ninguém que conheço chega em locais dando sustos em outras pessoas a não ser o meu amigo Apollo — disse ela em tom de sensatez, fazendo menção para que o menino sentasse-se abaixo da árvore junto a ela para começar a tão esperada aula do dia.
  — Verdade — ele admitiu num sorriso ladino.
  — Antes de chegares estava lembrando do dia em que finalmente aprendeu a escrever seu nome, lembra disto? — disse Ayla retirando um livro de sua cesta vermelha.
  — Sim, foi um grande alívio para vós, não é mesmo? — ele gargalhou em ironia pegando o livro da mão de Ayla, e ao Apollo encará-lo, percebeu-se cair na mesma memória...
  — E agora que estás aqui, é hora da nossa aula, não é mesmo, Pollo?
  — Ah, não, por favor, Ayla, não hoje — Apollo protestou, sua voz soando melodramática.
  — Nada disso, garoto. Há mais de uma semana, tens tentado me enrolar! —ela retrucou com um sorriso irrefutável, deixando-o sem argumentos.
Ayla então com destreza, delicadamente envolveu seus dedos em torno da alça da cesta que ela trouxera consigo, retirando dela com cuidado o livro do alfabeto Alvdiano - língua falada em seu país - que se destacavam por sua singularidade e complexidade.
— Vamos, Pollo. Ao menos hoje, pratiquemos a escrita do vosso nome — ela pediu, os olhos brilhando de expectativa.
A súplica de Ayla, enriquecida por sua inegável fofura, emanava uma força singular, capaz de amolecer os corações mais duros. Apollo, o destinatário daquela solicitação encantadora, era completamente vulnerável à magia que emana da expressão de sua amiga. Como resistir ao pedido de alguém tão adorável?

— Está bem! — rendeu-se — Mas apenas isso, tudo bem? Estou esgotado, a fábrica estava sobrecarregada com mais trabalho acumulado do que nunca — ele explicou, um suspiro de exaustão escapando-lhe dos lábios. A confissão era a mais pura verdade. Mas como poderia uma criança de tão tenra idade ser submetida a tal fardo? Desde a partida prematura de sua mãe, que transcorreu um verão atrás, as responsabilidades e a pressão haviam sido cruelmente impostas a Apollo. E outrora brilhante e cheio de vida, havia sido ofuscado pelas correntes implacáveis das obrigações. Ele ansiava profundamente pela simplicidade das vidas das outras crianças, desejando ir à escola, aprender a ler e escrever, e desfrutar das brincadeiras que eram seus direitos inalienáveis.
Mas, seu pai, uma figura um tanto que desumana, o havia forçado a suportar o peso de não apenas de sua própria sobrevivência, mas também a de seus dois irmãos pequenos. O homem, em sua própria vilania, optou por abandoná-los, partindo para outra vida, deixando seus filhos completamente órfãos.
— Como já vos disse antes, Apollo, não me sinto à vontade com essa ideia — Ayla falou com sinceridade, expressando sua preocupação. Para ela era totalmente errado uma criança ser obrigada a trabalhar, e Apollo sabia que ela estava absolutamente certa.
— Não entende que poderiam morar na minha casa?
— Sua mãe já nos ajudou imensamente, e não queremos ser um peso a mais, Ayla — respondeu mantendo sua firmeza na sua fala — Agora, se não se importa, vamos começar logo, pois deixei Laurel e Dain sob os cuidados da senhora Eliek e não quero demorar mais.
Ayla iria intervir, mas assentiu, embora seu semblante ainda carregasse o rastro do desapontamento, ela abriu o livro que continha o alfabeto Alvdoniano, preparou-se para mais uma lição que ministraria a Apollo. Mas, para aliviar o clima tenso sobre uma criança ser obrigada a trabalhar, ele estava disposto a brincar com a menina para fazer ela esquecer daquele assunto.
— Que letra é esta? — ela indagou, apontando com o dedo delicado para a letra A do alfabeto.
— Letra Σ — respondeu ele, com um toque de ironia, afirmando que a letra E era a letra A. Ayla, com um olhar de reprovação, corrigiu a interpretação equivocada.
— Não, esta é a letra correta, a letra Ă — declarou, com uma nota de autoridade em sua voz. No entanto, Apollo sabia que a paciência dela esgotava facilmente, o que o levou a mais uma provocação quando Ayla mostrou-lhe a letra P.
— E esta? — ela inquiriu novamente.
— Letra Ï — Apollo respondeu, sugerindo que a letra P era, na verdade, outra letra. O nível de irritação de Ayla estava aumentando, e ela exclamou seu nome quase perdendo a paciência.
Apollo! —- ela bradou, seu tom de voz refletindo sua crescente impaciência.
—Tudo bem, tudo bem! — ele riu, colocando fim às provocações. — É a letra þ.
Ayla, por sua vez, decidiu impor um limite à brincadeira.
— A partir de agora, terás que escrever esta parte sozinho. Não vou mais ajudar se continuares a zombar de mim.
— Está bem, mandona — Apollo zombou com um sorriso travesso, rindo da expressão decidida de Ayla. Com um traço de determinação que revelava sua disposição agora para aprender, pegou a caneta-tinteiro e pressionou-a contra o pergaminho, fixando seu olhar no alfabeto Alvdoniano. Com a combinação das letras e a dedicação necessária, ele escreveu seu próprio nome de uma forma peculiar: ÅþðÏÎð. Após concluir a tarefa, ele mostrou o resultado a Aysha, que não conseguiu esconder seu alívio.
— Por Deus! Finalmente! — ela exclamou, deixando transparecer seu alívio e Apollo riu mais uma vez e Ayla não hesitou em empurrá-lo, na tentativa de fazê-lo parar de rir, o que apenas o fez rir ainda mais…

A Pedra da lua e o Girassol (DEGUSTAÇÃO)Onde histórias criam vida. Descubra agora