A noite se alonga do lado de fora da janela.
São sete horas.
Enquanto me arrumava, todos os raios do pôr do sol se dissiparam. Ou ao menos, tentava me arrumar. A escolha da roupa foi difícil, mas cheguei à seguinte combinação: camiseta listrada, saia azul-marinho, jaqueta jeans, tênis velho e All Star de cano alto preto. Uma meia-calça grossa para não passar frio. O único acessório é meu colar favorito: um pingente de pena prateado, amarrado em uma linha trançada.
Para os toques finais, me forço a passar um rímel e um delineador.
Não que eu não goste de usar maquiagem, longe disso. É só que… quem quero enganar? Realmente não gosto de maquiagem. Essa coisa borra e gruda.
Enfio meu celular na bolsa e passo a alça pelo ombro.
Pronta para sair.
Ao atravessar a porta, encontro minha avó à minha espera.
— Amy, querida, me avisa quando for embora da festa e estiver na casa da Emma.
— Claro, não se preocupe.
— Tome cuidado e me ligue se precisar — o mesmo pedido sempre que saio, não importa o horário.
— Pode deixar — digo, já saindo pela porta, indo em direção ao elevador.
Faço um breve aceno para o segurança no hall. Quando abro uma brecha nas portas, o vento frio faz minha saia esvoaçar. Abaixo-a rapidamente com as mãos. As portas se fecham atrás de mim com um solavanco, me empurrando para a rua.
Em noites de inverno, como a de hoje, São Paulo fica linda. Se fosse menos poluída, o céu ficaria estrelado, com certeza. Apesar disso, as luzes da cidade são charmosas — mas isso depende de qual parte da cidade você anda, algumas são bem perigosas.
É arriscado sair à noite, mas eu não tenho carteira de motorista e não quero pedir para minha avó me levar porque ela está cansada.
Pego o ônibus no ponto mais próximo. Pago o cobrador e vou direto para os bancos do fundo. Coloco os fones de ouvido, mais para evitar que falem comigo do que para realmente escutar alguma coisa.
Pelo menos o ônibus não está tão cheio como nos horários de pico, mas mesmo assim evito me sentar perto de pessoas que eu não conheço. Fico com raiva das pessoas que, vendo os lugares vazios no ônibus, escolhem sentar bem do seu lado.
Um homem, alguns bancos na frente do meu, chama minha atenção. Ele é alto e bem robusto. Não olho diretamente para ele, com medo de que fale comigo, mas observo-o de soslaio. Fico incomodada com o seu olhar insistente, reparando nos meus movimentos. Não é a primeira vez que isso acontece e com certeza não será a última, infelizmente.
Fecho a cara e olho para a janela, ignorando sua presença.
Na maioria das vezes é uma merda ser mulher.
Observar as casas e os prédios passando é uma boa distração. Em outras vezes, já me distraí tanto observando a passagem que perdi o ponto. Alguma fantasia maluca sempre surge quando minha mente vagueia por aí. Gosto de escolher pessoas aleatoriamente na rua e observá-las pelo curto tempo do nosso encontro, daí começo a imaginar a rotina dela e quem ela é.
Os desconhecidos sempre têm histórias curiosas para contar através dos gestos.
Leva meia hora até chegar ao meu destino.
Aperto o botão e o motorista para abruptamente, jogando meu corpo para frente e para trás. O transporte público tem sérios problemas no Brasil. Antes de descer reparo que o homem continua a me observar. Esquisito. Assim que as portas se abrem, salto imediatamente para fora, pulando todos os degraus.
O homem faz o mesmo que eu.
Ando cada vez mais rápido, chegando quase a correr.
Isso nunca aconteceu comigo.
Meu coração pulsa de nervosismo e desespero. Minhas mãos começam a suar frio. Não arrisco olhar para trás, mas posso senti-lo vindo atrás de mim.
Sem pensar duas vezes, viro em uma esquina próxima torcendo para que o homem não me siga e aperto o passo.
— Amy? Estamos aqui! — Avisto Rose, do outro lado da rua, acenando para mim.
Ela não precisa me chamar duas vezes. Ao primeiro sinal de redução na velocidade do trânsito, atravesso. Um dos motoristas impacientes acelerou mesmo antes de eu ter saído da rua, passando extremamente perto das minhas costas. Em uma fração de segundos o mundo parece desacelerar.
No carro, no banco do motorista, vejo três ou quatro vultos avermelhados. A estatura baixa demais para uma pessoa adulta.
Mãos firmes agarram meus antebraços e me puxam para frente.
— Que cara maluco! — Eduardo segue o carro com os olhos.
— Se quer andar mais rápido, coloca o carro na cabeça! — Rose grita.
— Você está bem? — Alan ainda segura meus braços.
Alan Nascimento Diacomom. Meu melhor amigo.
Ele me observa com atenção, esperando por uma resposta. Seus olhos não se desviam dos meus nem por um segundo, mesmo que ao nosso redor haja muito barulho. Seus lábios tremem um pouco. Os fios de cabelo loiro roçando em suas sobrancelhas franzidas de preocupação.
— Sim, estou bem — me afasto com rapidez dos seus braços, arrumando minha roupa apenas para disfarçar o nervosismo que seu olhar causou —, obrigada. Você é sempre rápido.
— Sempre preparado para salvar você — Ele sorri. — Está sempre tropeçando por aí.
— Você fala como se não fosse você quem faz questão de me fazer tropeçar todas às vezes — acuso-o, me lembrando das suas brincadeiras idiotas de tentar dar uma rasteira em mim quando ando do lado dele.
— Até parece que faço isso — Ele ri.
— Não se faça de sonso — Rio.
— E aí amiga, como você está? — Rose me cumprimenta.
— Estou bem. E você?
— Que ótimo! Então já podemos entrar! — Emma surge atrás de Rose e Edu. Ela me abraça. — Não me leve a mal, mas quero curtir muito essa noite! Estou precisando de uma noite de festa!
— Cansada das provas no final do bimestre? — Arrisco.
— Ah, nem me fale sobre isso! — Rose exclama. — Não aguentava mais!
— Foi péssimo! O professor de Geografia não queria aceitar meu trabalho! Toda vez que ele via, achava um erro diferente — Emma reclama.
— É, ainda bem que o trabalho era em dupla, né? — Eduardo cruza os braços.
— Sinto muito por você ter que arrumar minha parte, Ed. Eu não ia conseguir fazer aquilo e ainda estudar para física! — os braços de Emma caem do lado do corpo — prometo que no próximo trabalho pego mais partes para fazer.
— Tudo bem, não tem problema. Você pode pedir ajuda se estiver com dificuldade, mas tem que fazer, viu?
— Sim, sim, eu sei — Emma fala, distraída, abrindo seu espelho de maquiagem e observando a sombra nas suas pálpebras —, vocês acham que está muito exagerado?
Eduardo passa a mão no rosto, irritado.
— Não — Respondo.
— Está perfeito — Rose concorda.
— Vamos entrar logo antes que eu me arrependa de ter saído de casa, por favor — Eduardo acena à entrada da festa com a cabeça.
— Por favor! Não vou deixar você ir embora sem aproveitar — Alan passa o braço por cima dos ombros de Eduardo —, precisamos de um pouco de diversão!
Antes de se virar, Alan me olha uma última vez e sorri. Então arrasta Eduardo para a entrada da festa.
Rose para ao meu lado e dá uma cotovelada em mim.
— Aí! — Reclamo.
— Eu vi, hein? — Ela arqueia as sobrancelhas, sugestiva.
— Viu o quê?
— Ah, não se faça de sonsa. Ele está na sua. — Ela aponta Alan com a cabeça.
— Para com isso, Rose. Somos só amigos. — Dispenso suas suposições e sigo os meninos e Emma.
É aniversário de um colega nosso da escola. Ele fez dezoito anos sexta, mas decidiu comemorar hoje, sábado. Como sua família tem dinheiro, ele decidiu alugar uma casa de show para a sua festa. E como coincidiu com o final das provas, a expectativa é de que a festa esteja lotada.
Verificam nossos nomes na entrada.
— Convidados ou pista? — O segurança pergunta.
— Convidados do Bruno — Emma responde.
— Eu não acredito que ela conseguiu me arrastar para a festa do ex ficante dela — Eduardo resmunga do meu lado e preciso me segurar para não rir. — Deveria ter ficado em casa lendo.
— Se estiver ruim, a gente vai embora de fininho para a minha casa e vê um filme — cochicho de volta.
— Combinado — Edu aperta minha mão.
Quando a porta se abre, a batida alta da música reverbera por todo meu corpo. O salão é escuro. Algumas luzes coloridas piscam pelo teto e as pessoas que dançam na pista parecem se mover muito mais lentamente do que realmente estão.
Há adolescentes bêbados. O que me faz pensar em como eles conseguiram bebidas já que a maioria de nós é menor de idade. Deve ser outra vantagem do dinheiro. Só sei que hoje eu não beberei nada alcoólico. Particularmente, odeio bebida.
De qualquer forma, não é da minha conta o que cada um faz com a sua vida.
Caminho no meio do mar de pessoas. Faço o máximo para me esquivar de todas elas. Nunca fui muito fã de multidões. Mais a frente, Emma faz sinal para nos aproximarmos de uma mesa. Ela diz alguma coisa, mas o som da música é tão alto que eu não escuto nada.
Sentamos os cinco na mesa redonda mais próxima.
Observo as pessoas dançando, se divertindo, tão leves…
— E você, Amy? — Alan pergunta, mas estava tão presa em meus pensamentos de adolescente que nem reparei que eles estavam conversando.
— Hã? Não estava prestando atenção — digo, sem graça.
— Ele estava perguntando se você pretende ficar com alguém nessa festa — Rose repete, animada, e todos voltam sua atenção para mim.
— Ah, tá. Bom, eu acho que não — sou sincera —, não tem muitas pessoas interessantes aqui, e ninguém interessado em mim também, então acho que só vou curtir a festa mesmo.
— Ah, para, Amy! Até parece que você não tem nenhum contatinho. Vi como o Paulo te olha… — a frase morre na garganta de Alan e ele desvia o olhar.
Minhas bochechas aquecem.
De repente, meus dedos, sobre a tábua da mesa, passaram a ser muito interessantes.
— Vou pegar uma bebida! — Rose anuncia.
— Vou procurar o Bruno — Diz Emma. — Vem comigo, Ed?
— Ahn? Eu? — Edu faz uma careta.
— Sim, vamos logo… — Emma rapidamente engancha um dos seus braços no de Ed.
— Ah, mas eu não quero ficar de vela ou no meio do climão com seu ex ficante… — Ed reclama enquanto é arrastado por Emma para o meio da multidão.
Rose sai logo atrás deles.
Ficamos só eu e o Alan. A costumeira estratégia dos adolescentes quando querem que algum casal dê certo. Argh, fala sério, que sem criatividade. Mas espera, nós não somos um casal! Em um silêncio inquietante, no meio de uma troca de olhares atentos, ouço:
— Seu olhar é diferente dos outros. — Ele quebra o silêncio.
Sinto mais calor ainda.
— Ah, obrigada. — Digo, meio sem jeito de novo. Do que ele está falando? O que isso significa? Existe um olhar diferente? Ele é meu melhor amigo, não deveria me sentir assim. — Preciso ir ao banheiro.
Levanto com um solavanco e esbarro em alguém que passava atrás de mim. Bebida cai sobre minha roupa e o cheiro forte de álcool impregna o tecido.
— Meu Deus, me desculpe, eu sinto muito… — Me apresso em falar para a pessoa.
— Ah, droga. Agora vou ter que pegar outra bebida. — O garoto se afasta resmungando e analisando a própria camiseta.
— Você está bem? — Alan levanta e se aproxima de mim.
— Sim! — Me afasto dele mais rápido do que o planejado. — Só preciso limpar isso, eu… eu já volto…
Não o espero dizer mais alguma coisa.
Entro no banheiro me sentindo a pessoa mais ridículo do mundo.
— Idiota, idiota, idiota — resmungo baixo —, ir ao banheiro? Isso foi ridículo.
Arranco vários papéis do puxador e tento usá-los para secar o álcool da camisa. Quando isso se prova inútil, amasso-os com raiva e jogo-os no cesto de lixo. Apoio as mãos na pia e encaro meu rosto no espelho.
— Por que estou agindo como uma idiota? — suspiro — ele é meu melhor amigo! Confio nele de olhos fechados…
Abro a torneira, faço uma concha com as mãos e a encho de água.
— Nos conhecemos há tanto tempo… e agora, isso? Completamente boba e nervosa perto dele, parece que meu QI diminuiu para menos infinito…
Lavo o rosto com a água.
— O que isso significa? — Encaro as gotas de água escorrerem até meu queixo e então pingarem para o chão.
Quando ergo o rosto novamente para o espelho, meu coração acelera.
Parado na frente da porta, um corpo masculino ergue-se como uma montanha, bloqueando a saída.
Viro de súbito e ando de costas até a outra extremidade do banheiro. Abro a maior distância possível entre nós.
O homem permanece imóvel. Ele usa uma roupa toda preta, e mesmo que possua outras cores, a iluminação colorida do banheiro da balada atrapalha minha visão. Uma das poucas coisas que consigo enxergar é a máscara assustadora e peluda escondendo seu rosto.
— Quem é você? — continuo me afastando dele — se não percebeu, está no banheiro errado.
Esbarro no secador de mãos e assusto com seu barulho repentino. Na fração de segundos que demoro entre olhar para trás, onde o aparelho está preso na parede, e retornar a encarar o sujeito, o homem avança.
Ele caminha na minha direção com passos firmes e decididos.
— Ei! EI! — grito com as mãos na frente do corpo, em uma tentativa inútil de me defender.
O sujeito agarra meus ombros com suas mãos imensas. Tento me soltar. Debato meu corpo desgovernadamente e faço o máximo que consigo para acertá-lo de algum modo. Seu aperto continua firme.
Reúno a maior força que consigo e piso no seu pé, em seguida, chuto sua canela.
O homem resmunga por debaixo da máscara. Suas mãos afrouxam um pouco.
Me jogo na direção da pia, e de cima dela, agarro o frasco de vidro do sabonete líquido. Quando me viro, o homem já está parado atrás de mim. Imenso. Com algum esforço, arremesso o frasco na cabeça dele. Entretanto, o homem sequer tenta desviar.
Quando o frasco o atinge e o vidro se quebra, ele apenas gira o pescoço de um lado para o outro, se alongando, como se não fosse nada.
— Espera! ESPERA! — grito quando ele se aproxima novamente. — Socorro! SOCORRO!
Grito o mais alto que consigo, mas duvido que alguém consiga me escutar por cima da música.
— SO-COR… — O homem tampa minha boca com a sua mão.
Espremendo meu corpo entre seus braços, ele me arrasta para fora do banheiro. O homem me segura com tanta força que meus movimentos não passam de solavancos fracos.
Tento nos levar para o meio das pessoas, mas o homem faz questão de nos afastar o máximo possível de todos, caminhando pela lateral do salão. As luzes coloridas e piscando também não colaboram para que alguém perceba o que está acontecendo.
Mordo a mão do homem, encoberta por uma luva grossa.
— SO-COR-RO! — grito enquanto ele resmunga.
— Cala a boca, sua desgraçada — a voz dele sai abafada de debaixo da máscara.
Ele tampa minha boca novamente e antes que possa fazer outra coisa, estamos caindo pelo vão de uma porta para emergências. Ele empurra a porta com as costas e então me solta no chão de asfalto, do lado de fora da casa de show.
Meus joelhos raspam no chão.
O homem para na frente da porta da qual saímos, bloqueando-a.
— O que… o que é isso? — me arrasto pelo chão, me afastando dele — quem é você? O que você quer?
Rastejo, desesperada, pelo asfalto áspero e esburacado. Meus dedos procuram qualquer objeto pelo chão que possa me ajudar a escapar.
Enquanto me arrasto de forma humilhante e abalada, os passos do sequestrador são calmos e pesados. Ele vem até mim. Abaixo minha cabeça e ergo as mãos na frente do corpo, desejando que ele suma dali.
— Por favor… por favor… — choramingo com medo do pior —, vai embora. Por favor…
O homem agacha na minha frente. Como me recuso a encará-lo, ele agarra os fios de cabelo da minha nuca, e força minha cabeça para trás. Sou obrigada a encarar sua máscara inexpressiva.
Posso jurar que o prazer percorre seus músculos.
Ele ergue a outra mão, no intuito de me bater.
— Já chega.
A voz vem das sombras de um poste de luz queimado.
Uma silhueta feminina, coberta por grandes tecidos, se aproxima do homem.
— Ela não é para você — apesar do seu corpo ter aparência feminina, sua voz sai distorcida, como se ela quisesse preservar sua identidade.
O homem segura com ainda mais força meu cabelo. Uma lágrima de dor escorre pela minha bochecha.
— Preciso te lembrar quem está no comando hoje? — De dentro da capa que cobre o corpo da figura feminina, um pequeno feixe de luz avermelhada escapa dos dedos enluvados dela.
O homem não precisa olhar para trás para compreender o tom ameaçador da sua comparsa. Ele resmunga irritado. Sua mão solta meu cabelo e me empurra, com violência, de volta para o chão. Caio de bruço no asfalto, o corpo esticado, vulnerável.
Apesar de estar vestida, nunca me senti tão desnuda.
Frágil.
Varro o lugar rapidamente com o olhar, buscando qualquer coisa que possa ser útil, qualquer chance de fugir, de chamar ajuda. Meu coração está tão acelerado que começo a acreditar que é possível vomitá-lo.
A única esperança é tentar me levantar e correr para o lado oposto dos meus sequestradores. E longe deles, usar meu celular para ligar para a minha avó. Ou a polícia. Eles estão cochichando sobre algo atrás de mim, talvez decidindo quando devem me matar ou se podem ganhar alguma grana oferecendo resgate. É um plano cheio de falhas. Não tenho conhecimento das habilidades físicas deles e muito menos sei o que é aquela luz vermelha que a mulher tem, talvez um sinalizador, ou um laser…
Nada disso importa agora.
Eu não tenho tempo.
Preciso fugir.
Com uma força que nunca imaginei possuir, engolindo o medo e acendendo a vontade de viver que há em mim, ponho-me de pé. Não me atrevo a olhar para trás, e corro da melhor forma que consigo. Sequer ligo para as dores musculares causadas pela luta no banheiro. Minha vontade de sobreviver é maior do que tudo isso.
Quase consigo sentir o alívio da liberdade no final do beco.
Quase.
Duas figuras surgem à minha frente em um piscar de olhos. Elas saem da sombra, como a mulher. Não há nada a se fazer. Meu corpo se choca com o das outras duas massas. Forço minha passagem por entre as duas figuras, mas braços e mãos me agarram com firmeza e me empurram para trás.
Tropeço sobre meus próprios pés. Apesar de não cair, sou obrigada a recuar. Eles bloqueiam a saída do beco.
Ando tanto para trás, que minhas costas batem no peitoral do primeiro homem. Imediatamente volto a olhar para os meus dois primeiros sequestradores. Tento me afastar deles também, mas as quatro figuras se aproximam, fechando um círculo em volta de mim.
— Quem… quem são vocês? O que vocês querem? — Passo o olhar por todos eles, atenta a quem fará o primeiro movimento agressivo.
Eles não respondem.
Sob a luz fraca dos postes do beco, as máscaras que eles usam parecem ainda mais amedrontadoras. Marcadas com fortes contrastes de luzes e sombras.
— O que está acontecendo? — Mantenho meu corpo girando, tentando manter todos eles no meu campo de visão. — Vocês são humanos?
Uma das figuras atrás de mim, ri. Encaro-o.
Um corpo de estatura masculina, coberta por tanto tecido que mal consigo distingui-lo das sombras na escuridão do beco. Seu rosto também é coberto por uma máscara, mas diferente das outras, é possível ver um brilho esbranquiçado como leite vindo dos seus olhos. Em contraste, suas pálpebras inferiores e superiores são envoltas em uma tinta tão preta que parece carvão. O resto do seu rosto é escondido por uma máscara feita de osso, moldada como o crânio de um boi.
— Ela perguntou se somos humanos? — O mascarado de boi, ri de novo — acho que exageramos na caracterização.
— Cale a boca — a figura ao seu lado, também masculina, adverte. Sua voz sai rouca por debaixo de uma máscara de mariposa. As asas do inseto, enormes, cobrindo todo o seu rosto.
— Só quero um pouco de diversão… — o crânio de boi resmunga.
— Quem são vocês? — Indago, aproveitando que eles começaram a falar entre si.
A mulher se aproxima ainda mais, entrando embaixo da luz fraca de um poste. Sua cabeça é coberta por um capuz, escondendo toda a parte de trás da sua cabeça. Sua máscara é de ossos.
Me afasto por instinto.
— Quem nós somos? — a mulher também deixa escapar um riso seco. — Você deveria se perguntar quem você é.
— O quê? — Pisco duas vezes, aturdida.
— Nunca teve a impressão de ver algo, e depois, repara não haver nada naquele lugar? — ela fala com calma, — Nunca se perguntou o porquê de se sentir tão deslocada entre os demais?
— Eu não sei do que você está falando e também não me interessa — falo com firmeza. Um surto de coragem. Mais surto do que coragem. — Essa sua fala pomposa, toda essa cena de sequestro e máscara… isso está parecendo um grande clichê. Aquelas cenas em que um humano qualquer, de repente, descobre não ser um humano qualquer… ele… ele tem poderes, sabe? Tipo isso. — Faço uma representação tosca de movimentos com as mãos, como se fosse conjurar algo. — Aí chegam umas pessoas… pessoas como vocês… e dizem que ele é o filho de sei lá quem de um reino distante ou que foi abençoado por fulano de tal e agora ele é um fortão poderoso que precisa salvar todo mundo. Se vocês iam dizer coisas como isso… nem precisam dizer, não me interessa, não estou a fim.
Minha voz e meu corpo tremem tanto, que a única coisa que vem a minha mente, é a imagem de um pinscher tendo um ataque de raiva. Quando fico nervosa, acabo falando um monte de bobeiras, várias delas aleatórias, por puro desespero. Me arrependo de cada palavra que acabei de dizer.
Um silêncio constrangedor reina entre nós, até os mascarados caírem na gargalhada.
Um sorriso nervoso toma minha boca.
— O que o mundo fez com esses jovens? — o cara de boi questiona.
— É o preço por pessoas como nós terem espalhado nosso mundo a torto e a direito, escondendo-se atrás da desculpa de que tudo é ficção. O sigilo nunca deveria ter sido quebrado — O cara de mariposa aponta para mim, — Agora temos que aguentar isso daí.
Minha respiração acelera. Preciso encontrar um novo jeito de fugir, mas com tantos olhos me observando, é ainda mais difícil do que antes.
— Acho engraçada a sua prepotência, Amymarie — a mulher fala de repente —, achando que isso é um tipo de recrutamento.
— Não foi o que eu quis dizer… — na verdade, nem eu sei o que quis dizer —, espera, como você sabe meu nome?
Fico ainda mais atordoada.
— Ah, Amymarie, eu sei muitas coisas… — a mulher diz sem pressa alguma —, basta você me pedir para contar.
— O quê uma desconhecida poderia saber a meu respeito? — Encaro-a, mas minha voz não demonstra a mesma firmeza que meus olhos. — Creio que nada que eu mesma já não saiba.
O ambiente é retomado pela risada seca da mulher.
— Quanta arrogância — consigo imaginar o sorriso estampado no seu rosto por debaixo da máscara —, sei muito mais do que você imagina.
— Se acha que saber meu nome é o suficiente para me fazer acreditar em qualquer bobagem que diz saber sobre mim, está muito enganada — tento manter minha voz firme apesar do nervosismo.
Me forço a engolir qualquer outra palavra desnecessária.
A mulher suspira.
— Já que se acha tão esperta. Diga-me, como seus pais morreram?
Meu estômago despenca.
Como essa mulher poderia saber algo sobre eles? Meus pais morreram quando eu ainda era uma criança pequena o suficiente para lembrar pouco deles. É um assunto do qual eu não falo.
— Morreram em um acidente. A casa pegou fogo — respondo seca.
— Foi o que imaginei — o prazer transparece na voz da mulher. — Devo adivinhar quem te contou isso? Sua avó, com certeza.
— Como…
— Como sei disso? Já disse, sei mais do que você sabe.
Nada faz sentido para mim. Desde o homem da máscara peludo ter entrado no banheiro feminino e me arrastado para essa reunião esquisita, cheia de lunáticos. Por mais que a mulher tenha me dito coisas que jurei que ela não saberia, acredito que os sequestradores, principalmente serial killers, pesquisam muito bem suas vítimas. Não passam de psicopatas.
Eu preciso fugir.
— Como você sabe dessas coisas? — pergunto, para ganhar tempo para pensar em um novo plano.
— Eu apenas, sei.
— Então me conte. Se sabe tanto de mim, qual a grande verdade obscura de que não sei? — indago com um certo tom de deboche na voz.
Preciso entrar no jogo deles se quiser sobreviver. Entreter meus raptores.
— Ah, fico feliz que tenha perguntado, porque, na verdade, há sim uma verdade obscura — a mulher caminha em círculos à minha volta. — Tive o desprazer de conhecer seu pai.
Forço minha mente a não acreditar nela, mas essa afirmação é surpreendente demais para que eu consiga ignorá-la.
— Como? — a pergunta escapa dos meus lábios antes que eu consiga impedir.
— Sei que pode ser chocante, mas como não interessa agora — a máscara da mulher me encara friamente —, você, Amymarie, quase adivinhou. Com essa historinha de super poderes…
Meu rosto ruboriza de vergonha por deixar meu nervosismo transparecer tanto e falar bosta. Mas pelo menos isso parece ter me feito ganhar algum tempo extra.
— Só que você não é abençoada. Você é a criação impura dos renegados que foram seus progenitores. Seus pais nos dão vergonha até hoje — ela sibila as palavras, cheias de veneno. — E, como uma ingrata, não nos procurou durante todos esses anos…
— Do que você está falando? Por favor, fala alguma coisa que faça sentido! — Minha voz se eleva mais do que eu pretendia. Ela deve estar fazendo algum jogo mental, tentando me deixar confusa.
Não posso perder. Escolhi entrar no jogo deles para ganhar tempo. Preciso manter a situação sob controle possível.
De repente sinto pingos molhando minhas bochechas, meu couro cabeludo, minhas roupas. A garoa do inverno é assim. A chuva vem quando bem entende para lavar todas as coisas ruins. Nenhum de nós mostra incômodo com a água.
A mulher olha para o próprio pulso. Parece que ela confere algum tipo de relógio, mas não sei direito o que é. Ela encara seus outros comparsas e depois volta a me olhar.
Algo me diz que o tempo deles está chegando ao fim.
— É o seguinte, pirralha: cansei dessa historinha para boi dormir — ela suspira, irritada. — Não tenho tempo para esse teatrinho. Suas tentativas de enrolação foram boas, mas não deveria tentar jogar contra uma rainha, se é apenas um peão.
Afasto dela. Achei que tinha escolhido jogar, mas mergulhei de cabeça no jogo deles.
— A verdade é que seus pais foram assassinados por nós — ela fala com prazer —, o fogo na casa, foi o resultado de uma batalha. Não de um acidente, como você gosta de chamar. Seus deploráveis pais davam muitos problemas, infringiram diversas leis, inclusive, para ter você. Teríamos matado-a também, se não fosse por aquela velha bruxa raquítica e enxerida. Ela conseguiu salvar e esconder você desse mundo. Mas o mundo sempre reclama aqueles que pertencem a ele, não tem como escapar. — Ela se aproxima ainda mais de mim e meu corpo se encolhe involuntariamente. — Amymarie, isso não é um recrutamento. É uma execução.
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A Deusa da Água
ФэнтезиVERSÃO NOVA! Em um mundo onde lendas folclóricas brasileiras e deuses se tornam realidade, Amymarie Falk está prestes a descobrir que sua vida é uma mentira. Cuidada por sua avó desde criança, ela não imaginava que, nos seus dezessete anos, seria a...