Grandes Descobertas

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— O que é isso? O que vocês estão fazendo na minha casa? — minha avó questiona quando sai do estupor.
— Não consigo sair de casa — dou de ombros —, então eles vieram aqui.
— A senhora quer ajuda? — Rose se prontifica a pegar as compras da minha avó.
— Hã? — ela reage confusa. — Pode ser, querida. Obrigada.
Enquanto meus amigos recolhem as compras espalhadas pelo chão do elevador, minha avó se aproxima até o bloqueio invisível.
— Você os chamou aqui? — ela sussurra para mim.
— Não, por quê?
— Por que eles vieram, então?
— Ué, eu sumi na noite passada, capotei durante a madrugada e a manhã inteira. Eles estavam preocupados. Não tive tempo de mandar mensagem. Vieram ver se eu estava bem.
— Droga — ela pragueja.
— A senhora escutou que eu não consigo sair daqui? — estico os braços sinalizando todo o apartamento atrás de mim. — Eles também não conseguem entrar.
— Eu sei, fui eu que coloquei esse bloqueio — ela fala, distraída.
— O quê? — levanto de súbito, me afastando dela.
Meus amigos param de mexer nas sacolas atrás de mim, alarmados. Pela expressão da minha avó, é nítido que ela se arrependeu de dizer essas palavras logo depois que elas escaparam de sua boca.
— Isso é brincadeira, né? Como… quando…?
— Você pode fingir que nunca disse minhas últimas palavras?
— Não!
— É claro que não — minha avó suspira —, achei que você esqueceria da situação como das outras vezes, mas minha intuição estava certa, algo está diferente…
Ela pondera, absorta em seus pensamentos. Minhas perguntas são ignoradas.
De repente, ela vira para meus amigos.
— Bom, meninos, muito obrigada pela ajuda com as compras, eu consigo arrumar tudo daqui para frente. — Ela sorri para eles. Um sorriso forçado.
Meus amigos estranham sua reação.
— A senhora tem certeza? — Emma fala com cautela. — As coisas não parecem tão bem…
— Sim, tenho certeza — ela fala com firmeza.
— E como vai passar pela porta? — Eduardo indica a passagem com o queixo.
— É só uma porta — ela ri, sem graça —, não se preocupem, podem ir para casa. Tenho certeza que seus pais devem estar preocupados.
Minha avó encara-os, parada na frente da porta, como se para bloqueá-la. Enxergo meus amigos por cima dos ombros dela. Eles olham desconfiados, mas sem saber o que fazer. Ameaçam dar passos para dentro do elevador.
— Amy, se precisar de alguma coisa, liga para gente — Alan fixa seus olhos nos meus.
Nego com a cabeça, implorando em silêncio para que eles não me deixem ali.
Minha avó tem agido muito estranho. Não quero ficar sozinha com ela em um apartamento que não consigo sair.
— Olha, dona, você vai me desculpar, mas eu não vou embora — Rose cruza os braços. — A senhora me conhece há muito tempo, sabe o quanto me importo com Amy. Ela passou por muita coisa, não vou deixá-la sozinha.
— Não se preocupe, querida, ela não vai ficar sozinha — ela assegura.
— Vó…
— Mesmo assim! Somos amigos dela! Quero fazer companhia — Rose esclarece.
— Vó…
— Eu sei, mas por favor, me escute, por favor… vão embora. Isso não é para vocês. Amy ficará bem, mas preciso que vão embora…
— Por quê? — Alan indaga.
— Vó…
— Vocês correm perigo se ficarem. Perigos que são incapazes de lutar contra. Por favor.
— Perigo? Que tipo de perigo? — Edu pergunta.
— Vocês não gostariam de saber.
— VÓ — grito para que ela me olhe —, para com esse jogo, não adianta! Você pode ter se esquivado das minhas perguntas ontem a noite, mas quanto mais fala, mais nítido fica de que está escondendo algo.
Ela me encara com seriedade. Seus braços tremem do lado do corpo.
— Todos eles já tentaram passar pela porta e viram essa luz verde esquisita.
— Vocês viram? — Ela os encara de súbito. — Todos?
Eles assentem com receio.
— Como isso é possível? — ela sussurra para si mesma — Tem algo de errado.
Ela solta com cuidado as compras no chão e arregaça as mangas da sua blusa. O bloqueio brilha onde recebe o toque das palmas das suas mãos. Ela faz movimentos combinados, algo que ela parece ter decorado. Suas mãos sobem e descem, giram e empurram, deixando rastos luminosos. Ao final do compilado de movimentos, um buraco se abre no centro do bloqueio e expande-se por toda a dimensão do vão da porta.
— Entrem — minha avó pede.
Estou pasma. As palavras desapareceram da minha boca.
— Não queriam tanto entrar? — minha avó questiona quando percebe a hesitação deles. — Entrem.
Com um movimento circular com uma das mãos, ela faz as portas do elevador fechar. Meus amigos pulam de susto. Edu encara as portas do elevador boquiaberto. Emma alterna o olhar do elevador para a mão da minha avó, como se estivesse fazendo uma conexão entre os dois.
— Foi só coincidência. — Rose dá de ombros e passa pela minha avó, entrando no apartamento.
Todos eles passam pelo vão da porta sem dificuldade alguma. Nos acomodamos nos sofás da sala enquanto minha avó anda pelo apartamento incomodada. Sem ter muito o que fazer, e nos devendo várias respostas, ela finalmente se aquieta e senta na nossa frente.
— Como vocês conseguiram ver a luz? — é a primeira coisa que ela pergunta.
Ninguém responde porque ninguém sabe a resposta.
— Quem são seus pais? — ela indaga.
— Que tipo de pergunta é essa? — Emma ri.
— Isso não é brincadeira — minha avó declara —, preciso saber para conseguir entender…
— Entender o quê? — Rose pergunta.
— O porquê de estarem aqui.
Ninguém a entende.
— Vó — decido chamar a atenção dela para outra coisa —, ontem conheci uma mulher que falou… — hesito por um momento —, que meus pais foram assassinados. Você não me disse isso, nunca me disse qualquer coisa parecida com isso.
Temo por sua reação.
Ela para de andar pela sala e, pela primeira vez, seus olhos recaem sobre mim com total atenção. Suas pálpebras tremem. A tensão viaja entre nós como um filete de água gelada.
— Quem você conheceu?
— Eu… não sei o nome dela. Ela não disse.
Rose coloca sua mão sobre a minha, me dando apoio para prosseguir.
— Mas vó, o que ela quis dizer com isso? — apresso em perguntar. — Ela sabia meu nome, sabia sobre meus pais e disse até que eu era um erro… que eu deveria morrer.
— Ah, querida, eu não queria que você descobrisse assim, eu sinto muito — dá para perceber a sinceridade em sua voz. Ela se senta na poltrona à frente. — Tentei protegê-la de tudo isso, mas temo que não seja mais capaz de esconder isso de você. Antes que fique brava comigo, saiba que fiz o melhor que pude… achei que assim você ficaria segura, mas esse mundo não desgruda dos seus. Ele sempre encontra um jeito de reivindicar os que pertencem a ele. Infelizmente chegou a hora.
Suas mãos tremem. Ela apoia os cotovelos sobre os joelhos e evita meu olhar.
— Seus pais não eram totalmente… humanos… e você… quer dizer, acho que o resto de vocês também…
— Como assim não eram humanos? — indago sem esperar.
Ela respira fundo.
— Você não é uma pessoa comum. — Ela esfrega uma mão na outra. — Seus amigos… não era para eles conseguirem ver a barreira na porta. Eles enxergam também, mas por algum motivo, parecem não conhecer esse mundo. Ou não lembram dele.
— Conta outra! — Cruzo os braços. — Esse tipo de coisa não existe. Não na vida real. Só na ficção. Não é como se pudéssemos ser algo a mais, além de humanos.
— Isso é sério, Amy.
— Isso, literalmente, não tem como, nem em inúmeras vidas, ser verdade. — Edu fala. — Já li muitas revistas em quadrinhos, mas sei que minha vida não faz parte de nenhuma delas.
— Estou falando a verdade.
— Para, eu sei que você não queria que eu fosse à festa — gesticulo com as mãos. — Não precisa inventar uma desculpa esfarrapada e colocar meus amigos no meio disso só para que eu não saia mais de noite. O lance da porta foi esquisito, eu sei, mas tenho certeza que conseguimos encontrar uma explicação racional para isso também.
— Isso não é uma desculpa, Amy. Aquelas pessoas, naquele beco… se eu não tivesse chegado a tempo…
— Não, chega. Eu não quero ouvir!
— Você precisa entender, Amy — ela fala firmemente. — Acredite, gosto muito menos dessa situação, do que você. Eu tentei evitar, a todo custo, que esse dia chegasse, mas não importa o que eu faça, o outro mundo sempre nos alcança. Já perdi as contas de quantas vezes fiquei aliviada por você esquecer durante o sono e acordar achando serem apenas sonhos.
— Apenas sonhos? — Pisco algumas vezes, atônita.
Meus sonhos nunca foram muito normais. Na maioria das vezes são maçarocas desconexas, mas alguns sonhos foram bem nítidos. Esses têm começo, meio e fim. São os únicos que lembro após acordar. Às vezes sonho com recados, gente me avisando de alguma coisa que eu deveria lembrar quando acordo. Sempre esqueço da mensagem. Ou são sonhos bem fantasiosos e até meio macabros.
— Se concentre, querida — ela ignora minha pergunta. — Tenho certeza que deve ter visto algo de que não consegue explicar racionalmente. Algo além da porta.
— Vi uma luz — declaro — saindo dos olhos da mulher.
— E como você explica isso?
— Sei lá, você pode ter contratado um grupo de mágicos? Drones com projeções? — Nada explica o que aconteceu, mas minha avó tem o costume de inventar desculpas estranhas toda vez que não quer que eu saia. Não é difícil pensar que ela tenha planejado algo mais complexo dessa vez.
Mas ela disse algo sobre meus sonhos.
— NÃO! — Ela levanta as mãos para cima, impaciente. — Prestem atenção, todos vocês! Alguns de nós fomos abençoados pelas forças que regem o mundo, mas não todos…
Seria possível minha avó ter ficado maluca?
— Com todo o respeito, senhora, mas você não está falando nada que faça sentido — Rose fala. — Meus pais são completamente normais. Meus avós também eram. Inclusive Sara! Ela teria me contado caso isso fosse verdade.
Sara é a irmã mais velha de Rose.
— Isso está muito esquisito — Alan fala.
— Eu só quero ir para casa — Edu se encolhe no sofá.
— Eu só queria uma manhã tranquila pós-festa — Emma resmunga —, e ganhei uma velha delirando.
Minha avó fecha a cara. Ela levanta a mão, fechando-a, e logo em seguida começa a abri-la lentamente. Da ponta de seus dedos saem pequenos raios de energia verde. Quanto mais ela abre a mão, maiores ficam os raios, parecendo verdadeiros relâmpagos.
— Eu conseguiria fazer isso, sendo apenas uma humana? — Ela indaga com a maior naturalidade possível.
Meu cérebro ferve.
Procuro algum projetor escondido pelo teto da sala.
— Você não vai encontrar nada aí — minha avó adverte. — Esse verde vem da minha aura e energia. Todo filho e filha consegue acessar seu poder e conjurá-lo ao ter uma certa experiência.
— Isso… isso é impossível. Impossível! — Edu acusa. — Com certeza há algum projetor, algum show de luzes que esteja fazendo isso.
Minha avó ri.
— É normal que suas mentes não compreendam a magia tão rapidamente. Vocês não estão acostumados a vê-la, ainda. Mas posso provar que é real. — Minha avó estende a mão com os raios para Edu.
Ele se encolhe ainda mais contra o sofá e olha-a, desconfiado.
— Toque na minha palma — minha avó orienta, a palma ainda estendida.
Edu encara sua mão, cogitando.
— Edu, não faça isso — Alan adverte de trás de nós, os antebraços apoiados no encosto do sofá. — Pode não ser real, mas se for, você não sabe o que essa coisa faz.
Meu amigo continua ponderando e encarando os raios serpenteantes, mas com muito medo para encostar neles.
— Ai, deixa que eu faço — Rose, impaciente, se estica em direção à mão da minha avó.
— ROSE! NÃO! — grito, mas já é tarde demais.
Rose agarra a mão da minha avó e em questão de segundos é repelida para seu lugar. O corpo dela treme, mas logo para.
— O que você fez? Está maluca? — grito para a minha vó.
— Queriam uma prova.
— Você poderia ter matado ela — reclamo — o que você fez?
— Você me subestima demais. Sei a voltagem que mata ou não uma pessoa.
— O problema não é ESSE!.
Enquanto Rose volta a se sentar, ela é acudida pelos nossos amigos.
— Você está bem? — Emma ajuda-a se ajeitar.
Rose suspira e encara a própria mão.
— Foi como encostar em um raio… mas não forte o suficiente. — Ela gira a mão de um lado para o outro. — Senti a corrente elétrica passando pelo meu corpo e voltando para ela.
Rose encara minha avó.
— Como? — É a única coisa que ela pergunta.
— É parte do poder que herdei — explica minha avó — do deus da magia.
Engulo em seco. Não é possível. Agarro o braço do sofá com tanta força que os nós dos meus dedos ficam esbranquiçados. Como assim ela tem “poderes”? Isso faz dela um tipo de bruxa? Deve ter pirado, só pode! Não tem como ser um projetor, Rose sentiu, fisicamente, a energia.
— Uau! — exclama Emma, com sarcasmo e espanto ao mesmo tempo — você ficou maluca! Mas supondo… que eu acredite nessa doideira, o que somos então?
— Não sei, para mim vocês eram completamente normais até dez minutos atrás. — Os raios desaparecem dos seus dedos. — Mesmo que eu soubesse, somos proibidos de falar. Se não foram criados na magia desde pequenos, vocês têm que descobrir sozinhos. É para o seu próprio bem.
— Ai, que droga — Edu resmunga baixinho.
— Amy — seus olhos fixam nos meus —, quero que saiba que independentemente do que você tenha escutado, e do que ainda vai escutar, seus pais lutaram bravamente antes de morrerem. Eles eram pessoas únicas, enfrentavam as críticas com a cabeça erguida. Eles foram heróis. Salvaram você e os dois mundos…
— Isso ainda não pode ser verdade — sussurro. Coloco minha mão na testa, tentando tampar meu rosto. — Como isso foi acontecer? Se é verdade, por que nunca me contou? E por que aquelas pessoas queriam me matar? O que eu fiz?
A mulher realmente sabia mais de mim do que eu mesma. Tenho dificuldade em digerir as informações que minha avó me conta.
— Ah, Amy, você não fez nada, querida. Seus pais que fizeram, eles eram… — ela se interrompe e decide mudar de frase — eles acabaram se conhecendo e se apaixonando. Era um amor proibido. Quando o antigo parceiro de seu pai descobriu, ele quis matá-los. Dizia que era uma vergonha para o nosso mundo. Eles fugiram, também não eram bem vistos pela nossa sociedade apesar dos serviços da sua mãe. Por questões que não cabem mencionar agora, era impossível que esse parceiro encontrasse seu pai… mas como sempre, ele fez o impossível. Um dia ouvimos a porta quebrar. Seus pais pediram para eu levar você comigo. Eu disse que deveria ajudá-los, mas para eles a prioridade era salvar você. Quando voltei a casa, já era tarde demais. Você foi a única coisa que me manteve viva, que me fez lutar por nós e por eles — ela diz aquelas últimas palavras chorando. — No final desse dia, seus pais morreram, mas levaram o parceiro do seu pai com eles. Uma vingança cruel e impensada, por puro ciúme. Ele não suportava a ideia de que seu pai havia mudado. As pessoas que encontrou hoje são seguidoras do mesmo homem que matou seus pais. O legado dele permanece vivo entre seus apoiadores. Eles nunca descansaram desde aquele dia… f-foi difícil escondê-la por tanto tempo… e-eu sabia que não aceitariam você… e-eu tentei achar uma brecha, mas a lei é clara. Apesar disso, nada comprova que você seja o que acham que é, o que temem que seja.
Sinto meus olhos ficando mais quentes. Quero chorar, mas não deixo que as lágrimas caiam. A verdade me atinge lentamente. Minha avó não inventaria uma mentira dessas sobre meus pais, ela não teria coragem. Pelo menos é isso que eu espero.
— Eu sinto muito, vó. — As palavras saem como um engasgo.
Sinto meus amigos observando de forma desconfortante. Por um momento queria que eles não estivessem aqui para ver essa cena e ouvir essas coisas. Mas minha avó os convidou para entrar, ela deve querer que eles ouçam.
Me estico até conseguir abraçá-la.
— Me desculpe, querida. Eu queria ter contado antes, mas fiquei com medo de que você fosse me odiar por isso. Ou pior, que isso me fizesse perdê-la. — Ela remexe as mãos, impaciente. — Depois de hoje, após terem chegado tão perto de você, não posso mais seguir com a mesma estratégia.
— Claro que não a odiaria, você é a minha única família.
Seus braços passam em volta das minhas costas. Ela esconde o rosto no meu ombro. Quando volta a me olhar, apesar dos olhos cintilarem, as lágrimas não escorrem mais.
— Você aprenderá a se defender sozinha — ela fala com determinação. — Relutei muito quanto a isso, mas não há outro jeito. Pedirei para que meus amigos na escola cuidem de você.
Ela passa a mão pela minha bochecha.
— O que a gente faz agora? — Emma pergunta, apontando para ela e os meus amigos. — Meus pais devem estar preocupados…
— Não é só a Amy que aprenderá a se defender. Não é mais seguro que vocês andem por aí. Chegou a hora da transição — minha avó responde, recompondo-se rapidamente.
— E nossos pais? — indaga Rose — a escola…
— Meus amigos também podem resolver isso para vocês. Se podem ver esse mundo, tenho certeza que seus pais sabem mais do que vocês imaginam.
Ultimamente, parece que todo mundo sabe mais do que eu.
— E por que não soubemos dessas coisas antes? — Edu questiona.
— Não faço ideia, mas vários motivos podem levar os pais a querem afastar seus escolhidos desse mundo. Ele pode ser muito cruel com algumas pessoas — ela encara Eduardo. — Sei que é muito para absorver. Queria poder contar mais, mas não é o momento. E olha que eu já falei até demais!

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